sábado, 30 de junho de 2012

A Homophobia

de Arnaldo Domínguez
Tudo, todas as coisas que eu entendo,
eu entendo somente porque amo”.
Leon Tolstoi.

A moralidade é uma resposta perversa no neurótico, no sentido de perversão de caráter. Assim, ao situá-la em tal campo, considero que tal resposta representa uma “contra-vontade” manifesta e atuada, semelhante ao que Freud teorizou na Comunicação Preliminar.
Trata-se do negativo da expressão do desejo. Por exemplo, a mãe de uma jovem analisante disse-me, com ostensiva reprovação: “Ela é muito sensual!”. Corroborando a reação, também descrita por Freud, desse momento em que a sexualidade da filha está em clara ascensão e a da mãe, em declínio.
O que denominou-se “Homofobia”, com o propósito de definir a formação reativa originada no preconceito e intolerância contra aqueles/as sujeitos que amam e/ou gozam de modo diferente ao exigido pelas convenções morais, não pertence, definitivamente, ao capítulo das fobias, senão, das perversões.
A fobia é um sintoma que se instaura no sujeito perante o declínio da função paterna e o aumento da onipotência materna. Abordaremos e aprofundaremos de modo multidisciplinar esta questão, numa Jornada sobre “Mal-estar na cultura: o medo”, que realizaremos em São Paulo e em Ilhéus, no próximo mês de setembro, junto à comunidade indígena Tupinambá.
Nessa particularidade o pequeno Hans foi sagazmente revelador. Seu pai, cúmplice e amoroso, demandante do reconhecimento e da aprovação do Outro e sua (bela) mãe, insaciável e insatisfeita, pronta para devorar o seu produto.
Freud apresenta-nos a atitude do discípulo das quartas-feiras, pai de Hans – na Análise de uma fobia em um menino de 5 anos, texto publicado em 1909 – cindida entre o 'carinho afetivo' e o 'interesse científico'.
Estariam, Freud, Max e Herbert Graf (Hans) em busca de reconhecimento e de amor?
Uma importante perspectiva de “fixação” ao significante, o que situa tal busca do lado do inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja, mais próximo do amor que do mais além do princípio do prazer (Gozo, em Lacan), é apresentada por Elisabeth Roudinesco no dicionário da psicanálise que elaborou com Plon.
O sintoma de Hans consistia no temor dele com respeito à queda e a mordida dos cavalos. Quando completou seu 3º ano de vida Hans ganhou um cavalo de balanço, significativo presente do Professor Sigmund Freud, amigo da família. Herbert, o Grande Hans, morreu aos 70 anos de idade, vítima de uma queda e sofrendo de uma lesão das vias urinárias (wiwi-macher: o faz-pipi). Afecção que certamente o “morderia” ao urinar.
Dentre muitas contribuições importantes, o Professor também procurava neste relato de caso que supervisionava (embora Herbert dissesse, no final de sua vida, que o pai era apenas o intermediário da sua análise infantil), a psicogênese da homossexualidade masculina. Finalmente pode constatar, com alívio (?), que Hans se transformara num “homem de verdade” (?) com tendência viril a poligamia.
Me resulta preocupante – para dizer o mínimo – que muitos/as psicanalistas permaneçam prisioneiros da moral (vitoriana?), logo, surdos psiquicamente, e escrevam que os homens são polígamos por natureza (próximos do pólo do gozo no matema lacaniano do fantasma: $<>a). Isto confirmaria o que afirmou Lacan, que “o amor é a perversão polimorfa do macho”? O amor está no pólo do sujeito barrado, que o oposto. Por isso que amor e gozo não se entendem muito bem, como tampouco amor e uniões consagradas. Podemos confirmar esta assertiva num texto de Freud denominado “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, aonde apresenta uma das primeiras sínteses da sua teoria do Édipo.
Será que os ditos machos, quando investem no amor, regridem tanto?
Também muitos teóricos afirmam que as mulheres, mais ligadas ao amor, são fieis e monogâmicas.
Não é bem isso que a soberania da clínica revela para o bom escutador.
Pois bem, retornando à fobia. Ela nos é apresentada como sendo a transformação da libido em angústia (irreversível) e que encontra um objeto substituto no material chamado fóbico.
Os designados “homossexuais” seriam substituto do quê na homofobia?
Quando não somos capazes de entender alguma coisa – alerta Freud – procuramos desvalorizá-la com críticas”. E cita como exemplo o anti-semitismo e o sentimento de superioridade masculina perante as mulheres.
Teremos compreendido o que Hans nos revelou através dos escritos de seu pai?
Fico com medo porque você (papai) me disse que eu gosto da mamãe, quando eu gosto é de você!”
E o Professor entende que “Aquilo que é hoje o objeto de uma fobia no passado deve ter sido também a fonte de um elevado grau de prazer”.
O homossexual masculino identifica-se com a mãe, teoriza Freud, e gostaria de repetir as ternuras recebidas.
Hans responderia algo assim: Ah! Esses cavalos (adultos) que estão tão orgulhosos! Tenho medo de que caiam.
Medo de que nada disso se sustente.
Quem, afinal, não gostaria de receber de novo todas essas ternuras? Certamente que os perversos não gostariam, por isso são tão acossados pela solidão.
E a perversão polimorfa dos machos Hans resolveria com a seguinte solução: O papai se casará com a vovó de Lainz e eu com a minha mamãe. E pronto.
Porém, embora constatemos que a fobia, que se produz num espaço intermediário em que a barreira contra o incesto, ao mesmo tempo em que se faz sentir, não constitui ainda verdadeiramente uma interdição, permanecendo então um lugar de violência, opõe-se diretamente à perversão.
Quero dizer, frente à falta no Outro, o objeto fóbico protege do desaparecimento do desejo enquanto que o fetiche representa a condição absoluta do gozo. O fóbico defende-se do gozo aferrando-se ao amor com unhas e dentes. O perverso, ao contrário, defende-se do amor transformando-se num Mestre do Gozo. Esse que sabe “tudo”.

Dentre tantas conclusões apresentadas por Freud na discussão da análise de Hans, destaco duas.

1º, a propensão humana ao sadismo (crueldade e violência), suprimida na fobia e desenvolvida maravilhosamente no texto do Mal-estar na cultura. “O homem tenta satisfazer sua necessidade de agressão à custa de seu próximo, explorar seu trabalho sem compensá-lo, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, infligir-lhe sofrimentos, martirizá-lo e matá-lo”.

2º, o desejo de ser maior (Hans) representado pela hipótese que de existe somente um tipo de órgão genital.
Não estaríamos, aqui, autorizados a afirmar que a “Inveja do Pênis” é, fundamentalmente, masculina, então?
Assim entenderíamos porque o genital masculino se “regozija de ser olhado”, como aponta Lacan. Olhado como ímpar, como um pai. (Père).
Uma versão do pai. Père-version.
Os cartazes colocados nos mictórios masculinos dos Shoppings que proíbem atos obscenos, referem-se ao olhar.
Não olharás teu pai nu”. Como ocorreu ao filho de Noé.
Tampouco “olharás tua mãe nua”, como Acteão e Diana.
Se foi proibido isso implica em desejo (exacerbado) de olhar.

Antes de finalizar esta síntese, emitirei uma antítese.
Direi que, em Hans, brincar de morder o pai significava identificar-se com a mãe (ao contrário do que postula Freud), já que o pai é o cavalo que cai.
E sentar-se sobre a girafa, mais do que tomar posse da mãe (de novo, Freud), indica identificar-se com o pai quem, ao cair, esmaga Hans, transformado em girafa amassada.
Se o pai (simbólico) não se sustentar, o sujeito terá que enfrentar o vazio absoluto da psicose. E em lugar de fantasia, terá o delírio e a alucinação. Horror manifestado tanto pelos neuróticos quanto pelos perversos, cada qual com sua defesa.
Nesse sentido digo que a homofobia é uma perversão (como qualquer racismo). Seu mecanismo implica na recusa em reconhecer a realidade de uma percepção negativa, negando-a enquanto diferença.
Entendo perversão como essa tentativa de abolição das diferenças como modo de defesa contra a ameaça representada pelo desejo do Outro.
De tal modo que projeta a castração no outro, “inferiorizado” diria Freud, e que terá que ser eliminado ou transformado em instrumento de gozo. É neste ponto que se confunde com fobia. Mas o fóbico jamais agirá como Équs, cegando todos os cavalos para que não o vejam. Pelo contrário, ficará trancado em casa e bem longe dos estábulos que, talvez, tanto apreciara um dia que passou.
A perversão é intolerante perante o desejo, pois este implica em perda de completude gozosa. Assim como a neurose também é intolerante, pois para ela o desejo representa perda da completude amorosa (narcísica), permanecendo insatisfeito na histeria e impossível na neurose obsessiva.
E a saída contemporânea é pela via do cinismo e da ignorância. Tomei emprestado de Collete Soler o termo “narcinismo” que tão bem define a lógica da atualidade globalizada no capitalismo tardio.
Amor e gozo. Ética e moral.
Esses são os pólos da fantasia humana e ali, no gozo, é que temos que situar o discurso moralista enquanto resposta perversa. A homofobia é uma contra-vontade que expressa uma lógica fantasmática da completude. Portanto, não se trata de uma fobia senão de uma perversão.
Brasil sem homofobia? Só se for uma legislação elaborada no intuito de proteger as vítimas. Apesar de sabermos que o perverso sempre dará um jeito para burlar ou transgredir a lei.
Pois isto é da natureza dele.

No livro “A morte de Ivan Ilitch”, de 1855, Tolstoi escreve assim: “Faremos o que for necessário – afirma o médico – sempre de maneira idêntica para todos os pacientes”. E o narrador conclui: “tudo se passava exatamente como no tribunal”.
Itaquaciara, 26 de maio de 2012.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida

domingo, 24 de junho de 2012

A Boca de Venus

de Sintia Lopes Costa


Beijando, a boca de Venus
Beijas me reacendendo a chama
Anciã,
Se do teu corpo, eu sentir o cheiro aroma
Do campo
Beije me os seios
Deixe- lhes arrepiados
Deixe-me cheia de gosto
Deguste te na minha safra gloriosa do mais puro vinho
Que da minha boca, escorre a tua boca
Acompanhe meus movimentos lentos
Der-me tua boca condolente
Saliente,
Alimentar- te nos meus seios
Deixe-me sentir teus , lábios nos bicos orelhas rochas vermelhas
Dobre teus olhos de santo anjo
Quero o arcanjo, do fogo
E que ele me arrebata os beijos foçados
Faça em me brota os mais tementes desejos
E da minha entranha respingo vinho
De doce forte incorporando sabor
Beije-me Venus
Olhes para me” quero ver te os olhos
Fulminar- me o teu desejo
Arranha-te a pele macia com minhas unhas iradas
Laminar te com minha língua grotesca
Espavorido, ouvir-te os gritos
Os quais, provocará- me desejos extremos
Sangrenta, modificar tuas carnes fartas nos meus dentes
Vampiriza, teu pescoço marca-lhe com minha
Boca, chupadas loucas
Cansado, debater-te com teu corpo no meu
Soado,
Aclamando, o amanha
Uma outra vez,
Talvez.
Se meu sorriso –te agradou
Não te darei, descanso,
Tenho desejos incansável
E um corpo formigante
Se a te pareço conhecida.
Refaz-te todos os caminhos
Dos hospedes enigmas
E voltar-te a chupar-me a boca
Em círculos, decifras
Faz te com teu corpo, olhos lábios e boca
A leitura árdua do meu corpo
Serpe teia, tua serpente as minhas curvas,
Lambuzas, líquidos luminosos
Refugias, dentro de me
Latejas meu ventre em dança vibrando tua serpente
Se a me fizeres suspira-me darei -te meu gozo
Ofegante, palavras bravas rosnadas
Em atos obscenos, mostrarei- te meu corpo
Sem nem um pudor
Anseios, vagueiam vagarosamente, a minha mente
Minha língua latente procura a tua boca
Adormece-me a língua,
Com teus beijos flutuante dançante
Adentra-te a minha garganta
escaldante
Ainda, enfurecida, que ser beijada, por tua boca
Chupada, esfoliada,
Ater sangra-me toda saliva
Não me perguntes!
O que penso,
Mais sintas, o que sinto.
Percorrendo meu corpo,
Descubras, caminhos ainda não percorridos
Acharas o prazer e a dor
Se a me pareces um jasmineiro
Se ater sou uma flor
Deixe-me mostrar –te meus espinhos
Que te provocaras dor tezao e amor
Deixarei –te cavalgar em minhas montanhas
guardarei- te em minhas grutas
saciaras –te a fome do homem
e beberas, na minha boca o fogo
ar e aterra,
e não mais, conheceras a sede
pois serás eu” tua fonte viva, de todas águas
dos rios e mares.
E serás tu” o meu permanente alimento.


Quem sou eu”\? Definir! Sou um ser, ante ha hipocrisia / Idolatria.....Da” religião há Fe / Meu templo!
O universo. Seguimento...ama o todo como um só / O que eu” desprezo! Arrogância, há” falta de humildade.
O que me” move! O amor há paixao / A”sede de justiça / O que acredito; em dias melhores /
Não- sou o começo* porem não sou o fim.IIv-VII - EU”sintia Lopes costa / Vila Matilde – s.p

sábado, 16 de junho de 2012

O Conto Chinês contra a Árvore da Melancolia

de Christian Ingo Lenz Dunker



Recentemente a crítica semi-especializada de cinema dividiu-se entre os partidários de Melancolia, de Lars Von Trier e os inclinados pela Árvore da Vida, de Terrence Malik. Os amantes da bílis negra advogavam a riqueza e a intensificação de experiências que se pode obter com uma visão realista do mundo, na qual a falta de sentido, expressa pela finitude, pela morte e pelo vazio que move as relações humanas, é o grande real que precisa ser reconhecido, admitido ou suportado. Os acólitos da natureza arborescente insistiam no fato de que se olharmos bem perto ou de muito longe, ou seja, se mudarmos os parâmetros de nosso olhar, gradualmente a ausência de sentido cederá lugar à verdade imanente de um sentido escondido. Sentido mais simples, mais sóbrio, mas não obstante suficientemente orientador pra nossos sonhos e decisões. Os depressivos-realistas acham que a felicidade é uma quimera e que deve ser substituída pelo tema da “interessância-desinteressada” da vida. Os paranoicos-idealistas, ao contrário, querem contabilizar a felicidade, como fator biopolítico, mesmo que seja sob a forma invertida do desamparo, do desespero e da miséria da condição humana.

            Por minha parte, quero crer que entre a sobriedade norueguesa e o otimismo americano deveríamos introduzir a poesia latino-americana de Um Conto Chinês. Seu ponto de partida é quase impensável para as duas posições anteriores. Entre escolher se o passado nos oferece uma fonte soberana de significação, mesmo que seja o passado biológico da espécie, e saber se o futuro será mesmo uma catástrofe que devastará nossa capacidade de sonhar, o filme de Sebastián Borensztein, nos mostra que a verdadeira falta de sentido já está aqui e está sendo vivida como impasse de linguagem, de instituições e de atos de reconhecimento.

            Ricardo Darín, o herói de Conto Chinês, retoma aqui uma espécie de arqui-personagem que se transforma mantendo um traço unário, pelo qual se pode reencontrar a cada cena, o mesmo tipo de solidão compartilhada ao qual fomos apresentados em O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001) e no sensacional O Segredo de seus Olhos (Eduardo Sacheri, 2009). Desta vez trata-se de um pequeno comerciante de uma loja de ferragens que a cada vez conta os parafusos recebidos constatando que a fábrica entregou cinco ou seis a menos do que devia. Cultivando a memória de seus pais ele vive em uma espécie de santuário, sem mudanças significativas, com pequenos e grandes rituais, que ao final nos conduziriam ao juízo de que se trata de uma vida ordinária e vazia. Sem mulher, sem grandes amigos ou amores, apenas clientes e fornecedores tão ou mais bizarros do que ele. Mas neste cenário aparentemente desértico ele carinhosamente cultiva os seu passado, assim como coleciona recortes de jornais com notícias incríveis ou inverossímeis. Ou seja, acreditando você ou não o real acontece. E este real pode ser uma vaca que despenca sob a cabeça da noiva, o encontro com um estrangeiro, um planeta que se choca com a terra, ou a perda de um filho. Mas ao contrário de Melancolia, não há traço algum de depressão. Não há autocomiseração, nem Ideais descumpridos, á exceção dos pequenos disfuncionamentos “institucionais” como é o caso dos parafusos a menos. Ao contrário de Árvore da Vida, não há nenhum resíduo de esperança, nem a mais fácil que poderia dar origem a um novo amor. Há apenas desencontros recorrentes, com outros, que tal como ele, tornam detalhes irrelevantes, por exemplo, em torno da cor de uma dobradiça, a pequena diferença que parece dar sentido à vida. Uma vida na qual tudo o que havia para acontecer já aconteceu e aparentemente não foi muito bom. Alguém poderia dizer que a pobreza de sua experiência é tamanha que ele nem mesmo consegue se queixar de si.  Sua alienação avançou ao ponto no qual não há mais espaço para indignação, revolta ou angústia, á exceção das pequenas diferenças narcísicas representadas por parafusos a menos ou dobradiças a mais. Como diria Fernando Pessoa: “Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”.

            Este é o cenário para o que se poderia chamar de um encontro insólito. Um imigrante chinês, que não fala uma palavra em espanhol, entra em sua vida, transformando-a radicalmente. Este estrangeiro é a ocasião para um ótimo retrato do caráter típico de nossas instituições: a polícia que sempre faz algo a mais ou algo a menos do que deveria e a embaixada, dominada pelo descaso e pelo sem-sentido, criam este sentimento de que se ele mesmo não fizer alguma coisa a responsabilidade será sua mesmo. E é este ato sem sentido que dá sentido a todo o resto. Espero que o leitor verifique por si mesmo esta hipótese assistindo o filme. Ora, o que esta forma, quiçá típica, de sofrimento desencontrado, composta pela mistura entre precariedade institucional e desalento experiencial nos mostra é que há algo faltando no diagnóstico que opõe Melancolia à Árvore da Vida. Estes dois filmes falam do que se pode chamar de sofrimento de determinação, ou seja, o sofrimento presente em formas de vida marcadas pelo excesso de experiências improdutivas de determinação: casamentos calculados, rituais vazios, teatro cínico de vivências administradas, famílias inautênticas, consumo predatório. No interior de tais formas de vida a saída que se pode imaginar passa por um grande evento grandioso e impensável, como a passagem de um cometa, uma perda imprevista, uma paixão devastadora. Tais eventos funcionariam como uma espécie de “lei maior” capaz de suspender a relação de excesso e falta, em torno da qual giram a economia ordinária da melancolia-paranóia. O excesso de determinação, de controle, de segurança, gera vidas economicamente produtivas, porém destituídas de sentido. Vidas que se perguntam “para que tudo isso” ? levando-nos assim á falsa antinomia entre felicidade e interesse, entre melancolia real e esperança vital, entre consumo luxurioso e frugalidade naturalista.

            O que a produção fílmica recente da argentina, como a de Lucrécia Martel, por exemplo, tem nos mostrado, assim como os melhores filmes de Beto Brant, Walter Sales e Fernando Meireles, aqui no Brasil, é a existência de outra diagnóstica social do sofrimento. Não se trata apenas de pensar as formas mais ou menos opressivas, mais ou menos precárias, das determinações jurídicas, econômicas e morais. É preciso admitir que o sofrimento pode ter outra origem que não a falta ou excesso de determinação, a falta ou excesso de sentido. Esta origem alternativa, mas não excludente, residiria na ausência ou raridade de experiências produtiva de indeterminação.

Assim como em Lost in Traslation (Encontros e Desencontros, Sophia Coppola, 2003), o Conto Chinês mostra como o desencontro linguístico pode ser uma experiência produtiva não apenas para a determinação de planos e objetivos, de ideais e soluções, mas de verdadeiros novos problemas e de inusitados questionamentos. Nem toda indeterminação é apenas falta de determinação, ou seja, falta de lei, falta de ordem, falta de regramento. Há certas modalidades de indeterminação, como as que caracterizam as certas produções latino-americanas (e no mais o novo cinema terceiro mundista), que são extremamente produtivas. Nem toda anomia é perigosa e deve ser restaurada. Algumas delas, particularmente quando incidem em uma vida excessivamente repleta de sentido ou de falta de sentido, que geralmente se combinam como Melancolia e Árvore da Vida, são extremamente produtivas. Difícil pensar esta forma de mal estar, que por natureza seria refratária à determinação de processo e protocolos de tratamento, controle e administração. Mas mais difícil ainda seria uma vida que simplesmente abolisse esta possibilidade. 
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011), 


domingo, 10 de junho de 2012

Tudo Pode Dar Certo

por  Arnaldo Domínguez

O que pode dar certo?

“Por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” – Lacan, A Ciência e a Verdade.

O niilismo, termo que teve origem durante o período imediatamente precedente à Revolução Francesa e que designava, em princípio, a atitude daqueles que não se posicionavam nem a favor nem contra a revolução, estendeu-se à uma certa filosofia negativa da existência humana que parece alastrar-se em nossa época globalizada. O niilismo existencial, aonde nem a vida nem a morte teriam algum sentido ou valor e, consequentemente, os suicídios ou homicídios ocorreriam massivamente e por pura imitação ou por inércia, ou então, como afirmava Durkheim, cumpririam uma função social necessária a toda cultura, apresenta-se – para muitos – como um atual “sem saída”.
Entretanto, a psicanálise propõe uma saída para a compulsão à repetição e o que nela se insinua de pulsão de morte. Algo desta ordem, também, encontramos na arte. Contudo, são propostas que nem sempre dão certo!
“A posição do psicanalista não deixa escapatória – diz Lacan – já que exclui a ternura da Bela Alma”. Trata-se da divisão entre o Saber e a Verdade. E acrescenta: “A redução (do sujeito) constitui o objeto da ciência”. Assim, a ciência se endereça ao “sentido absoluto”.
No próximo passado sábado 02 de junho de 2012, respondendo a um convite do Prof. Sidnei F. de Vares, da UNIFAI, quem coordenou o ciclo de debates “Cinema e Psicanálise”, comentei o filme de Woody Allen “Whatever Works”, de 2009.  Tal expressão idiomática da língua anglo saxônica recebeu, nas legendas em português, diversas traduções. A primeira é destacada no título “Tudo pode dar certo”. Outras, no interior dos diálogos, são “faça o que for preciso” ou “qualquer coisa que funcione”.
Portanto, percorrem a dialética desde o lugar de um quantificador universal, “tudo”, “qualquer coisa”, até o imperativo categórico que emula uma certa animação neurolinguística. O bom conselho, quiçá, a la Shinhashyki: amar pode dar certo!
Tem um “pode” ou um “quase” que apontam para a impossibilidade da completude, o que causa certo alívio. Sempre me lembro daquele cinéfilo (obsessivo) que suportou até o final o filme “9 e meia semanas de amor” graças a delimitação temporal oferecida pelo simbólico do título. Isso tinha hora marcada para acabar.
 Allen ficou famoso inicialmente por satirizar na “telona” a neurose cosmopolita da metrópole de New York, semelhante a qualquer outra. Neste filme, Boris Yellnikof, interpretado magistralmente por Larry David, no ato de quebrar a quarta parede, como dizem, ou seja, ao revelar que ele tem um canal direto de comunicação com os espectadores (é o único do elenco que consegue nos ver), alerta-nos: Não se trata de um espetáculo destinado a que se sintam bem. A autoajuda ou o entretenimento não são seus propósitos, digamos.
Contraria, nisto, aquele filme de Benigni: “La vita é bella”, de 1997, no qual o “belo” escamoteia o “horror”, apesar de que no jornal A Folha de São Paulo dessa época tenham anunciado que “o riso nos salva” (?).
Nesta película Boris grita o horror: da condição temporária, da miséria neurótica que transformou a humanidade numa massa de estúpidos reprodutores de clichês (o mundo está tão cheio de gente estúpida que ser inteligente, como ele, é um fardo), dos preconceitos da sociedade (pseudo) puritana dirigidos contra os negros, os judeus, os gays, etc. Todo esse sem sentido da existência humana e suas crenças religiosas idiotas.
Representante da encarnação do último niilista verdadeiro resgata as sinfonias de Beethoven e até a Bossa Nova para se proteger de um universo massificado de jovens, niilistas também, mas aos quais não sobrou nada para poder negar.  A “balada” que frequentam, por exemplo, chama-se “Esfíncter Anal” e sugere a metáfora direta de: um gozo de merda.
Boris parece ser o único sobrevivente do naufrágio da pureza intelectual, capaz de renegar os valores metafísicos redirecionando sua força vital à destruição da moral para que, finalmente, tudo caia no vazio que nos levará à espera da morte ou ao ato de causa-la.
Somente ele compreende a insignificância das aspirações humanas e o caos do universo. Ele também despreza a ternura das Belas Almas tendo se transformado no Homem do Ressentimento que busca, no isolamento, a proteção necessária para seu desamparo. Projeta-se sobre todos nós naquilo que temos de arrogância, de desmesura, de suicidas, quer seja por vias “Egoístas” (dos desamparados do laço social); “Altruístas” (imersos na consciência coletiva) ou “Anômicos” (perante uma mudança súbita de lugar social), como classificou Durkheim em 1897. Casualmente, o mesmo ano em que Freud dissera a Fliess não acreditar mais em sua neurótica.
Essa “cota de sacrifício” exigida pelo laço social e suas forças morais reguladoras externas, afinal, é um ato particular endereçado ao Outro. Pois a pulsão de morte é presença silenciosa no sujeito e no laço. O inconsciente é o discurso do Outro. O inconsciente é o social.
Poderíamos situar aqui algo que emana desde a origem da crueldade infantil, que, ao dizer de Freud nos três ensaios “é referida a uma pulsão de dominação que originariamente não teria por objetivo o sofrimento alheio, mas simplesmente não o levaria em conta”. Boris tampouco busca o sofrimento alheio, senão, pelo contrário, é vítima da perfeição e do abandono. É um excluído do bando, portanto, uma exceção.
Ao se referir ao Rei “torto” de Shakespeare, Ricardo III, Freud diz que ele representa uma enorme ampliação de algo que acontece com nós todos.  Tem o direito de fazer o mal!
Boris não assume tão descaradamente esse direito. Apenas o exerce com as “criancinhas retardadas” às que ensina xadrez. É uma espécie de antigo “Maestro de Escola”, aliás, como muitos ainda o são ou como tantos analistas, quando na violência da interpretação psicologizante jogam pela janela um suposto saber que desconhece o/ao outro.
Satiriza aquele que, de acordo com Lacan, não existe: “O homem da ciência”, e também a alguns psicanalistas que denunciam a “foraclusão generalizada” propondo uma espécie de retorno messiânico do Pai Imaginário. Os demonizadores, de que fala Jurandir Freire Costa.
Convoca o paradigma da loucura da ciência que rejeita a subjetividade por razões metodológicas.
“A ciência está louca – diz Coutinho Jorge – mistura espécies, clona os animais e quer fazer isso com o ser humano. O ápice da loucura é tentar transformar a reprodução sexuada em assexuada”.
Se, por um lado, Boris representa aquele que “sabe tudo o que interessa”, debochando da mediocridade dos homens e atingindo também aos Eminentes Senhores da Academia sem poder se espelhar no símio de Kafka e nem usufruir do ato de Sartre ao rejeitar o Nobel de literatura, por outro, seu amigo professor de Filosofia faz um atravessamento discursivo perpendicular promovendo o saber e o valor no outro tido/dito como semelhante. Nesse caso, sua futura amante, a sogra de Boris, que o filósofo compartilhará com outro amigo numa “terceirização” do desejo insatisfeito, mais do que numa “ménage à trois”.
O espanhol Juan Antonio Rivera, professor de filosofia, invocou Sócrates num livro para interpela-lo sobre o que ele diria a Woody Allen e seus filmes. Allen que foi expulso do curso de filosofia na Universidade de Nova York em 1953.
Pois, digamos (antes de ler o livro de Rivera) que Boris transgride o Banquete de Platão e cede perante a insistência do amor transferencial de Melody (Evan Rachel Wood), jovem e bela quem, ao estilo de Alcebíades, parece ter encontrado o Ágalma (objeto a) na suposta genialidade hipocondríaca de seu benfeitor.
Melody é o retrato da Bela Alma, feliz em sua paixão pela ignorância e “enfermeira” que cuida e sustenta o Gozo do Outro. No caso, um outro atormentado pelo saber no lugar da verdade.
Orham Pamuk, num recorte que gentilmente enviou-me Íris Moraes Araújo e extraído de “Outras Cores”, escreveu: “Minha biblioteca não é motivo de orgulho, mas de vingança contra mim mesmo e de opressão”.
Estará toda cientificidade intelectual condenada à loucura? Exemplos disso não são poucos. Mas, será por conta disso que Boris se defronta, no final, com a magia? Tenta desastradamente um novo suicídio quando Melody o deixa pelo jovem ator (do desejo materno) e cai sobre uma “vidente” que se fratura em seu lugar. Bela metáfora para a mulher enquanto sintoma do homem. Afinal, o que é um homem para uma mulher? Ora, um estrago!
Na magia o saber está velado e, diz Lacan, a magia é sempre magia sexual. Longe do Viagra, neste caso. Uma tentativa extremada do diretor para arrancar-nos da condição farmacológica em que pretendem nos transformar.
Mesmo considerada uma falsidade ou algo sem grande valor, a magia (a ilusão) provoca, no final, feliz para tantos, uma chatice para Boris e aqueles que comungam de sua lógica, uma comemoração. O fundamentalista homofóbico se torna gay, a do desejo insatisfeito goza à rodo, e Boris esquece de cantar Parabéns a você enquanto lava as mãos ou o Hino Nacional ao sentar-se na privada, o que ficaria muito cômico no caso do Brasil. Ouviram do Ipiranga as margens plácidas..? Tudo pode dar certo?
Magia e  religião vão à sombra da ciência.
Logo, como cantava Atahualpa Yupanki: às vezes sigo minha sombra, às vezes (ela) vêm detrás. Coitadinha, quando eu morra, com quem vai andar?

“A veces sigo mi sombra / a veces viene detrás
Pobrecita, cuando muera / com quién va andar?”

07 de junho de 2012 – Itaquaciara, Itapecerica da Serra.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida

sábado, 2 de junho de 2012

Sete Dias com Marilyn

por Rodolfo Coelho

Assisti pela segunda vez ao filme
“Sete Dias com Marilyn” e confesso gostei demais.

É um filme que nos mostra as desventuras de um mito do cinema, Marilyn Monroe na Inglaterra no ano de 1956 para filmar a peça “O Príncipe Encantado”.

Nunca o cinema mostrou a Diva, a musa, símbolo sexual da América, deusa dos sonhos adolescentes de forma tão sublime e emotiva.

Michelle Williams encarnou Marilyn com toda a garra e sensibilidade revelando uma Marilyn frágil e insegura. Ao mesmo tempo com uma sensualidade provocante quase angelical.

Abandonada pelo marido Arthur Miller, Marilyn entrega-se a um tórrido romance com Colin Clark, o jovem assistente do prestigiado cineasta e ator Laurence Olivier.

O filme mostra o enfadonho dia-a-dia das filmagens nos estúdios de Londres. E como Marilyn usa pílulas para dormir, para driblar as crises nervosas fruto do seu difícil relacionamento com a equipe de filmagem.

Tudo isso o diretor Simon Curtis delineia na tela com extrema suavidade e glamour, usando um bom filme frente aos diversos lançamentos atuais.

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - ]gnição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro