Desde
os primórdios da cultura humana, ser feliz talvez seja a promessa
que mais fascine a todos. Em versões muito variadas, factíveis ou
não, se não em vida, no post mortem,
coisas impressionantes podem ser feitas em nome da expectativa de
chegar à felicidade.
O
cineasta americano Tood Solondz, em seu filme Happiness (1998),
circunscreve a questão da busca pela felicidade de maneira
emblemática e polissêmica ao situá-la no cenário do subúrbio de
New Jersey, local e situação que ele conhece bem, ao ponto
de fazer surgir, através de personagens caricatos, porém prováveis,
as armadilhas desse projeto "tão superlativo".
Fato
é que nos subúrbios norte-americanos -assim como fora deles- estão
todos procurando a felicidade.
Certamente
os pensamentos religiosos e filosóficos contribuíram para a
discussão sobre a felicidade, pela via da abordagem da consciência.
No entanto, tais discursos não esgotaram o problema. A conta da
felicidade humana não fechou e acabou por deixar restos, que se
tornaram matéria-prima de uma nova forma de pensá-la, desta vez,
pela via do inconsciente, tal como Freud o formulou. Freud se
interessou desde o começo pelos restos de uma clínica voltada
àquilo que não interessava a muitos, pois deixou exposta a
existência da dor de existir.
Vieram,
então, as concepções que a clínica da histeria rendeu sobre as
sobras do projeto humano de felicidade, a abordagem dos sonhos, a da
psicopatologia da vida cotidiana e, assim, a produção do que o
próprio Freud designou como a terceira ferida narcísica do humano,
tendo sido a primeira, a de não ser a terra o centro universo
(Copérnico) e a segunda, a do homem não descender diretamente de
D’us, mas de símios (Darwin).
Três
décadas após, suas primeiras elaborações teóricas e clínicas,
Freud debruçou-se mais explicitamente sobre o tema “felicidade”,
mais precisamente, num texto chamado “O mal-estar na cultura”
(1930). De fato, este texto foi fruto de uma reflexão inicialmente
acerca da plenitude do sentimento religioso, estabelecida por um
diálogo, iniciado em 1926, que se deu entre Freud e seu amigo Romain
Rolland.
Contrariamente
ao amigo, Freud pensava que não seria possível reconhecer no
"sentimento oceânico" com o mundo, mais do que a ilusão
de completude, digamos, de felicidade.
Mas,
como o título do mencionado texto freudiano de 1930 anunciava, há
uma parcela de mal-estar a ser admitida, por todo aquele que venha a
pertencer à comunidade humana.
Nesta
perspectiva, segundo a leitura de Freud, o humano estaria envolvido
em duas tarefas: a de buscar a felicidade e a de evitar o sofrimento,
sendo que esta última, por sua vez, contaria com os métodos da
intoxicação, da ilusão e o de tornar-se “homem ativo” no
mundo.
Sobre
as fontes do sofrimento, Freud acrescenta que estas provêm da
iminência das forças da natureza, da fragilidade de nossos próprios
corpos, digamos, sua degeneração e, por fim, do outro.
Freud
não poderia ser mais acurado. De certo modo, nem Solondz.
Em
Hapinness ficamos sob o impacto deste duplo esforço. Esforço
que não é do outro, do norte-americano, mas de cada um de nós.
Entusiastas e crédulos deste projeto, eles são aqueles que dão voz
às nossas próprias ilusões...
Pergunto-me
porque queremos tanto ser normais, ou enquadrados, quando nossa
solução, que não é a "Solução Final", é a de nos
fazermos sob as condições de singularidade que comportamos! Sim,
tal medida é trabalhosa, mas... Não é mais trabalhoso cumprir o
mandato?
Nesse
cenário, o nosso é o da moldura da cultura que insistente e quer
fazer com que todos caibam na forma?
Bom,
então, este filme é sobre as sobras. Sobre tudo aquilo que não
cabe no projeto de FELICIDADE/HAPPINESS.
É,
então, que na sociedade americana, no subúrbio norte-americano,
para o diretor deste filme, que lá nasceu e se criou, tais motivos
se tornam oportunidade de questão...À todos.
Os
personagens que nos são apresentados nos fazem pensar? Muito
provavelmente, já que acompanhamos lá, os micros e os macros das
violências que são feitas em nome da FELICIDADE.
No
filme, a irmã perfeita só o pode ser, à custa da irmã fracassada,
pois a imagem da segunda é o que confirma a da primeira, a irmã
feliz. É como sair com alguém que julga feio, para parecer bonito.
Que todos fiquem onde estão para manutenção da ordem e do
progresso, para a permanência da ORDEM MUNDIAL.
E
é assim que estão todos buscando os pares ideais, as situações
ideais, os rendimentos, os proventos ideais, enfim, o gozo ideal.
Ao
assistir Happiness, ficamos sob o impacto da frustração que
este filme não inventa. Sabemos da nossa própria farsa, de nossos
esforços na busca da tal FELICIDADE e na evitação do sofrimento.
Reconhecemo-nos aí.
Lembremos:
lembrar de algo é estar com este algo.
Happiness
faz pensar: o que temos feito e faremos com nossas sobras, com nossos
restos humanos, que não cabem no projeto de felicidade?
Tarefa
árdua e necessária e que, me parece, a psicanálise acolhe
prioritariamente. Mas não em condições de dourar a pílula. A
condição é fazer o caminho, sem a propaganda de que exista um pote
de ouro no final do arco-íris.
Se
neste sentido como em outros, o barato sai caro, neste caso, o
investimento pode valer o quanto pesa?
Não
seria a psicanálise o lugar disposto ao I-MUNDO, como inventou
Lacan, ao nosso lixo humano?
A
despeito da tirania que sempre resta nas vozes do supereu, podemos
inventar o possível. Fazer com as pulsões e com a imponência do
Real, eis o derradeiro desafio.
Vemos
em Happiness, como a violência pode ser efeito da melhor
intenção, aliás, que leva tantos ao inferno. Ainda não tenho
opinião formada sobre o inferno, mas me atenho ao nosso inferno, tal
como Godard o filmou em Notre Musique (2005).
Narcisismo
das pequenas diferenças? Nazismo homeopático?
É,
Melancholia (2011) é um planeta que existe, nos fez ver Lars
Von Trier...
A
sétima arte está aí para nos fazer pensar. E pensar não é o
mesmo que racionalizar. Racionalizar passa por tentar fazer caber o
corpo na versão e Isso não é possível.
Bem
ao contrário, pensar, como nos ensinou Freud (1911), e colocado sob
minha interpretação, é transformar corpo em palavra.
Recortar,
cifrar o inapreensível de nossa vida do dia-a-dia, caminho este que
uma análise deve percorrer.
Não
é pouca coisa. Não é linear. Não encerra a questão, e por vezes,
nem se quer é suficiente. Mas é efetivo.
Então,
o que há, sim, é a possibilidade de, como disse certa vez François
Leguil (1993), que o gozo se torne amigo do desejo, tornando viável,
para cada um, querer o que deseja e prezar a viagem –advertidos de
que a condição do desejo é a falta do objeto que o encerre.
Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP, Pós-doutoranda na Sorbonne ParisDiderot(Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e “Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.
de João Moreira Salles por Christian Ingo Lenz Dunker
Há
uma crítica que aponta como a psicanálise muitas vezes se serve da
arte apenas para confirmar ou ilustrar suas próprias ideias e
conceitos. Creio que no caso de Santiago, e de outros filmes
correlatos, trata-se de entender sua eficácia terapêutica de certas
experiências estéticas. Trata-se de descobrir como certos filmes
conseguem obter efeitos de cura, análogos aos de um tratamento pela
palavra. Desde a tragédia grega sabemos que experiências de
catharsis podem induzir transformações subjetivas ou
favorecer processos criativos ou sublimatórios. Mas isso não
explica por si mesmo como funciona a catharsis. Ademais a
redução da catharis a uma ab-reação de afetos, conforme as
primeiras intelecções freudianas sobre o assunto, terminou por
encarcerar este conceito no âmbito da técnica e da terapia,
esquecendo-se que na origem a tragédia tem que ver com a ideia de
cura.
Quando
discuti o filme com João Moreira Salles, em 2008, percebi o que
podia significa a expressão “cinema de autor”, geralmente usada
para designar filmes dos anos 1960 na França (Godard, Truffaut), ou
dos anos 1950 na Inglaterra (Hitchcock) ou ainda nos Estados Unidos
dos anos 1970 (Casavettes, Scorcese, Polanski) ou no seu último
remanescente Woody Allen. O cinema de autor sugeria um processo
inteiramente dominado pelo diretor que possuiria autonomia e
ingerência em cada parte do processo de produção, desde o casting
até a trilha, desde o roteiro até a montagem. O cinema de autor
é considerado, por alguns críticos, como a única forma de cinema
na qual a psicanálise pode ter alguma contribuição, porque neste
caso temos a individualização necessária para transportar
elementos de um campo a outro. Como se a ficção de unidade,
representada pelo diretor, fosse necessária para interpretar a
identidade estética da obra. Contudo, ao escutar João Salles
falando do processo do filme, o que emerge de modo saliente é
justamente o contrário. O “poder” do diretor é tremendamente
inerme diante da força do objeto fílmico, das restrições
estéticas, das contingências de produção. Em Santiago a
vítima, ou seja, o mordomo que funcionaria apenas como suporte
indefinidamente maleável para o processo de rememoração da
infância, do agora adulto diretor, escapa ao controle. E escapa
apesar da infinita boa vontade de Santiago. Ora, nada menos
demiúrgico do que esta “resistência do material”. O mito do
diretor-soberano não deve ser derrogado porque o cinema é um
processo coletivo de interesses e compromissos múltiplos
(produtores, indústria do entretenimento, público, crítica, afora
os processos de realização do filme), mas porque mesmo sem uma
instância central ela pouco pode contra a coerção dos processos de
linguagem e de força inerentes à matéria do cinema. Ou seja,
exatamente como na metapsicologia psicanalítica, na qual o indivíduo
egológico é apenas uma ficção para dar unidade a uma gramática
de divisões subjetivas, o cinema na sua forma “normal” de
indústria cultural prescinde de uma unidade psicológica para
tematizar seus próprios processos.
Mas,
a despeito disso há filmes que curam. E é preciso saber como eles
fazem isso. A primeira questão é saber do que este filme nos cura.
Da tensão de classe entre patrões e empregados? Da discrepância
entre sonhos de infância decepções do adulto? Dos conflitos
familiares e do ressentimento social? Dos impasses da história
“interrompida” do cinema no Brasil? Da relação que faz de toda
criação uma reparação (no sentido Kleiniano, mas também no
sentido do filme e do livro “Desejo e Reparação”? Ou
talvez a cura seja a cura do complexo de Ozimandias, do qual sofre
todo aquele que cria?
Lembremos
que Woody Allen inventou, aliás, muito propriamente, o complexo
de Ozimandia, extraído da poesia de Shelley, para descrever a
trágica descoberta, feita pelo artista, de que mesmo a maior
perfeição de sua obra não o salvará da morte e do
desaparecimento. A referência aqui é o imperador babilônico
Ozimandias que manda erguer uma imensa estátua de si mesmo, o que
não a impede de desaparecer sob as areias do deserto como uma ruína
esquecida. Contudo, não seria este mesmo o processo que faz
equivaler a cura com a dissolução do eu? Processo cultural, como
pretendia Hegel, que resulta na formação de um objeto que contém e
nega a sua história.
Talvez
seja inerente aos processos de cura enfrentar a própria
indeterminação do nome daquilo que deve ser curado. Quiçá a cura
termine com a nomeação, e ao mesmo tempo comece pelo reconhecimento
da insuficiência de todos os nomes. E se a cura for apenas o enlace
precário entre as diferentes formas de mal-estar que nos governam? E
o que Freud chamava de fusão e desfusão das pulsões, de vida e de
morte, possa incluir o sofrimento do que ainda não tem nome e do
sintoma está saturado de nomeações .
O
filme Santiago (2008), de João Moreira Salles nasce como um
filme “potencial” sobre a viagem de sua mãe à China durante a
Revolução Cultural. Ele sucede uma série de documentários que tem
por traço comum a tensão entre o estético e o político. Entreatos
(2004), narra a trajetória de Lula, Nelson Freire (2003)
fala da criatividade de um pianista, Notícias de uma Guerra
Particular (2000) aborda a estetização da violência, Futebol
(1988) examina o fenômeno catártico das massas.
Seriam
estratégias afins com a psicanálise, pois ambas perguntam qual
passado para qual futuro a partir de qual presente? Ou simplesmente
porque o gênero do documentário exige a reconstrução da
experiência, tal qual esperamos de nossos analisantes? Ou seria,
além e depois disso, porque se trata da engenharia particular pela
qual ficção e realidade se misturam na produção temporal da
verdade. A verdade da história ou a história da verdade? Tal como
nos deparamos com esta mistura entre lembranças, fantasias,
evidências e deformações, o cinema recorre ao indeterminado
“inspirado em fatos reais” ou “qualquer semelhança com fatos
ou pessoas terá sido mera coincidência”. Pode-se ainda argumentar
que o documentário é um gênero impossível não porque tudo é
relativo e a ficção é um espaço de liberdade gratuito, pelo
contrário, nada menos restrito do que a relatividade de cada
fantasia, ou de cada fantasia ideológica. Mas o documentário não é
um gênero impossível (como A mulher é outro gênero impossível)
porque ele é relativo aos pontos de vista presumidos, mas porque
nele, mais do que em outros gêneros confirmamos a tese de Eisenstein
de que a essência do cinema é o corte. Se há cinema há corte, e
se há corte há um real que fica “contornado” pelo discurso
fílmico.
“Por
ser muito pessoal, as pessoas têm a impressão de que cada dia na
ilha de edição era uma sessão de psicanálise, que eu saia
chorando. Agente realmente ria muito, até pelo ridículo de meu
comportamento que o material bruto revelava. Não sei direito porque
falam em coragem.” (João Moreira Salles - Entrevista à Folha de
São Paulo 13/08/2007)
Mas
é exatamente isso que se deveria esperar de uma psicanálise? Não
apenas choro e agonia, mas a possibilidade de fazer um documentário
da própria vida de tal forma a levá-la menos a sério e mais a
sério, ou seja, rir-se dela. O humor é uma das poucas estratégias
tematizadas por Freud, como eficazes contra esta espécie de síndico
do Mal-Estar na Civilização, ou seja, o superego. ”aquela”
reza que não volta mais, mas também “aquela” reza que cura, ao
inventar outro futuro possível, pela profunda experiência do
presente.
Não
tinha a noção de que, na verdade, não fiz um filme sobre Santiago,
mas sobre a minha relação com ele. Não havia ali uma relação de
documentarista e de documentado. Havia uma relação de patrão e
mordomo, de, em última instância, chefe e criado. (Thiago Camelo)
Santiago
é um percurso que se inclui a si mesmo, um filme sobre o filme, mas
não todo. Ele não é um filme alegórico. Em geral filmes
alegóricos são de amargar pela sua covardia. Santiago é um filme
de formação, como se diz em relação ao gênero, florescente no
século XVIII, um romance de formação, que incluía a narração da
experiência como parte da própria experiência. É um filme
dialético no sentido em que coloca em sincronia um conjunto de
contradições: os sonhos Brasil anos 50 e a casa abandonada dos anos
90. Promessa e decepção se resolvem em uma espécie de saudades de
um tempo em que o Brasil quis pensar a si mesmo, como um adolescente
que descobre-se em aguda necessidade de separação. Se o lugar do
Brasil mudou mesmo, o cinema perdeu seu lugar como voz desta
transformação?
Estão
ali as questões clássicas dos intérpretes do Brasil: a vida
privada e a vida pública (sincretismo brasileiro), o conflito de
classes miniaturizado, o “grupo maldito” e os outros grupos, o
apelo às dinastias monárquicas em casa de burguesia, o
argentino-italiano (sozinho) em solo brasileiro. Mas o filme que
poderia ter sido a casa e o mordomo transforma-se em um filme sobre
duas pessoas e uma experiência impossível: uma relação
impossível.
Em
Santiago, ao contrário dos romances de formação clássicos
como Jovem Meinster de Goethe, ou o Sobrinho Rameau de
Diderot, as contradições que não se resolvem em um final
triunfante. Mas em Santiago as contradições são postas e
construídas, mas não dissolvidas e superadas. Elas também não são
deixadas ao ar, com aquele sabor moral do apelo fácil ao estúpido
inefável da existência. A sua forma já é seu acabamento, sua
captura do tempo é o próprio trabalho que faz a experiência se
completar com sua narrativa, tal como ocorre no processo da cura. A
cura é sempre a cura do que poderia ter sido, das outras vidas
dentro da vida, do conflito insuperável entre o possível e o
impossível, entre o necessário e o contingente. Daí as expressões
“cura de um grande amor”, “cura de uma perda”, “cura da
angústia”, “cura das ilusões”, ou seja, a noção de cura
convoca impasses que não são exatamente problemas, mas condições
existenciais, experiências refratárias, mas nem sempre traumáticas.
Aliás, o impossível e a contingência são das duas figuras lógicas
maiores do Real em Lacan. E o que Santiago mostra é justamente esta
impossibilidade de “refazer” a experiência perdida da infância,
e por outro lado como esta impossibilidade é realmente “refeita”
se reconhecemos as contingências que o sobredetermina. Isso ocorre
necessariamente pela intercessão do tempo. O primeiro filme, que
poderia ter sido sobre a infância feliz de uma família e de um
projeto de Brasil. Seu fracasso, sua irrealização, a morte de
Santiago são vividos inicialmente como impotência, denunciada pela
cólera do diretor em fazer a realidade constranger-se ao que ele
tinha “em mente”. O segundo filme retoma o primeiro explorando o
seu fracasso não mais como uma impotência (do montador, dos
recursos dramatúrgicos de Santiago, da astúcia da direção), mas
como uma impossibilidade. Finalmente, há o terceiro filme, que é o
que o a recepção constrói ao interpolar a aventura de Santiago
neste momento histórico que é o seu, transformando-o em um encontro
contingente.
Em
sentido inverso e regressivo, Santiago faz parte do chamado cinema da
Retomada, no duplo sentido: retomada do processo brasileiro de
produção e filmes e retomada da história do cinema
brasileiro, de certa maneira “interrompido” após o Cinema Novo e
o Cinema Marginal dos anos 1960. A Retomada não é apenas na chave
da história política, mas também da chave estética e mais ainda
na chave pessoal. Aqueles que querem reduzir a leitura psicanalítica
do cinema à interpretação de personagens deveriam rever o papel do
herói desde a tragédia antiga, não apenas como senhor e artífice
individuado de seu destino, mas também como proto-agon, como
protagonista, ou seja, aquele que vive em si o agon (o
conflito), mas de tal maneira que ele pode ser percebido como
universal. Há aqui uma confusão entre interiorização de conflitos
sociais e a negação de conflitos sociais por meio de sua
psicologização.
Santiago
é uma cura para o ressentimento. Não uma cura reconciliatória (do
necessário ao possível), mas uma catharsis desintegrativa
(do impossível ao contingente). O seu verdadeiro problema é como
recusar suas formas mais simples e brutais de exercício do poder,
que se infiltram e se disseminam em ambições e decisões estéticas.
"Tinha
vontade de editar esse material com duas ou três locuções
diferentes. A primeira seria eu, que não apareço no filme, falando
sobre as imagens. A outra seria de um personagem que está no
material, pensando naquele momento sobre a viagem. E a outra, de um
personagem periférico. É sempre o mesmo material, que adquire
sentidos diferentes. Não é nada novo, original, mas está um pouco
mais no caminho do que me interessaria fazer."
O
enquadramento opressivo, formal, o “controle da cena”, a
repetição das falas, traz para o interior do filme aquilo que
deveria ser ocultado pelo corte e edição. Os ensaios, as imitações
de naturalidade, a construção do personagem. Este tensão entre
montagem visível e a montagem invisível não consagra-se a
demonstração de que “o mordomo, afinal um agregado, era só um
espelho”, como disse Inácio Araújo. O mordomo sai de seu
lugar e desfoca a imagem. A beleza da morte (“la gran partita”);
a grandioloquência da relação com o destino (“en cem anos
estarão todos muertos”) diante da praia de Copacabana, a
importância da “arquivística”, como tática de sobrevivência
simbólica e esforço de pertencimento se manifesta na ênfase nos
pequenos gestos metonímicos: os arranjos de flores, o fraque na casa
deserta, na música de Beethoven. É pela lógica do “pequeno
detalhe que o filme se mantém vivo”, como afirmou Cezar
Migliorin. Na posição “impossível” diante a morte e no
acolhimento da contingência da vida, Santiago é o testemunho
moderno de uma experiência trágica.
A
loucura genealógica de Santiago, que refaz criteriosamente as
famílias reais dos mais diferentes países e épocas, jamais é
reduzida a uma psicose bem organizada, assim como a sua orientação
sexual, apesar da sutil autodeclaração em contrário, não é
patologizada. Se a genealogia é um delírio, ela aparece no filme
muito mais como uma tentativa de cura. E a loucura está para a cura
assim como a psicose está para o tratamento. Só que enquanto a
psicose nos traria a experiência particular de Santiago, a loucura
nos traz este grão de verdade universal, que nos concerne a todos,
em nossa própria racionalidade genealógica.
A
interpolação de fragmentos de um filme em Super 8, com filmagens
“naturalísticas” das lembranças de uma família, brincando na
piscina (em silêncio) não funciona para dar maior realismo e
portanto fidelização do espectador ao valor da lembrança, mas ao
contrário, concorrem para enfatizar o fracasso que é a estrutura
mesma do filme, como deveria ser a de qualquer processo de cura. Um
fracasso bem realizado, um fracasso produtivo, isso é o de que se
trata no filme. Isso é o que se espera da psicanálise.
Em
meu último livro “Estrutura e Constituição da Clínica
Psicanalítica” procurei valorizar a noção de cura em
psicanálise. A cura - Kur em alemão, cure em francês
– não deve ser confundida com o tratamento (Behandlung) e
com a terapia (Therapie), se bem que os três procedimentos
concorram no interior da prática psicanalítica e na história de
sua formação. Alguns objetam que a noção de cura descende da
medicina e deve ser descartada, pois na psicanálise não curamos
pessoas como se cura uma gripe. Outros criticam o termo porque ele
soa religioso demais, como as curas que ocorrem em Fátima ou Lourdes
(sempre mulheres?), ou as curas mais ou menos metafísicas que
ouvimos falar em nossos tempos new age. Apesar destas duas
raízes cercarem a noção de cura, podemos recuperar um terceiro
sentido, quiçá descendente da antiga noção grega de catharsis,
ou seja, a ação transformativa que as obras de arte exercem sobre o
espírito humano. Há, no interior da noção de cura, uma combinação
entre exigências estéticas e políticas para as quais deveríamos
prestar mais atenção. Não me refiro à política como sistema
institucional de partidos e gerência do bem comum, mas da política
como encruzilhada impossível entre as exigências para governar
(exercer o poder sobre si e sobre outrem) e para recusar o poder
(forma como a autoridade simbólica usualmente se cria e se propaga).
A cura não é a negação desta relação, como sugere a noção de
cura de uma doença e a cura também não é a elevação desta
contradição à dimensão metafísica, como sugere a noção de cura
mágica. A cura é o reconhecimento e colocação desta contradição
em uma forma que aspira sua universalidade em uma sociedade por vir.
Devíamos,
neste sentido, corrigir a afirmação de Guatarri de que o cinema
é o divã do pobre, para o cinema é a cura, no sentido do
reconhecimento, de que existem pobres e ricos, existem homens e
mulheres, existem gregos e romanos, existem senhores e escravos. Mas
qual a natureza ontológica deste regime de existência? Neste ponto
Lacan ofereceu uma resposta diferencial: entre homens e mulheres
ocorre uma “não relação”, contudo entre mestre e escravo,
entre professor e aluno, entre a histeria e seu mestre ou entre
analista e analisante o que ocorre é uma “relação impossível”.
A “não relação” e a “relação impossível” são duas
figuras do que Freud chamou de Mal-Estar na Civilização e
que Lacan abordou com o conceito de Real. Ora, se o Real “veio para
ficar”, se ele é a posição insuperável, qual é seu destino? O
que fazemos com ele? Deleuze disse que isso levava a psicanálise a
uma moral da resignação. Ora, faltava a Deleuze, como a Guatarri, a
idea de cura. Se o Real não tem tratamento (mitigar o sofrimento),
nem terapia (consolar se com a impotência), ele passou a ser
designado como o “incurável”. Portanto, o real é o negativo da
cura e por ela se define. Assim como o desejo do analista define-se
pela negação do “desejo de curar”, portanto presume a cura, o
Mal-Estar define-se pela negação do Bem-Estar e presume o estar.
Isso nos leva ao lema freudiano: Wo Es war, soll Ich werden”,
ou seja, “Onde Isso estava o Eu deve advir”, ou seja,
estar, veir a ser, advir, por vir. O Mal-Estar que se aborda
pela cura é o que aproxima a prática da psicanálise de uma
experiência estética.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)
Pela
janela do quarto Pela
janela do carro Pela
tela, pela janela
Quem
é ela, quem é ela... Eu
vejo tudo enquadrado Remoto
Controle
Esquadros,
Adriana
Calcanhoto (1982)
Esquadrinhando
a Contemporaneidade
A
compressão pós-moderna do tempo-espaço colocou em questão nossa
capacidade intrínseca de perceber, interpretar e lidar com várias
realidades que se nos revelam a todo instante. Encontramos um
crescente desmerecimento da percepção humana em prol da realidade
tecnológica. Temos vivido um impacto significativo desta intensa
compressão sobre a economia, a política e a vida sociocultural. A
aceleração do giro na produção e no consumo vem influenciando as
formas de pensar, sentir e agir do indivíduo.
Consequentemente,
presenciamos a crescente volatilidade e efemeridade de modas,
produtos, ideias, valores e práticas sociais. O instantâneo e o
descartável permeiam nossa experiência, desde os recursos que
empregamos no dia-a-dia até nossa maneira de nos relacionarmos com o
tempo objetivo, compartilhado, medido pelos relógios e ciclos da
natureza; e o tempo subjetivo, cuja experiência e medida dependem da
história de vida, do funcionamento mental e da cultura em que cada
sujeito está inserido.
Hoje,
não identificamos mais nenhum valor perene que sirva de referência
às práticas socioculturais e pessoais: estamos diante de um
processo de fragmentação e ruptura do que denominamos sociedade.
É
com este cenário que David Cronenberg revela a fascinante, dura, e
às vezes nauseante realidade contemporânea em seu último filme:
Cosmópolis. Baseado no livro homônimo de Don DeLillo, considerado o
primeiro livro a retratar de forma fiel o século XXI, refletindo
sobre as importantes alterações nos paradigmas do espaço e do
tempo na contemporaneidade. Dirige a nossa atenção para um ponto,
fundamental: a tecnologia de que dispomos hoje interfere de maneira
direta em nossa relação com o tempo, na medida em que pretende, em
última instância, reduzir o tempo entre o aparecimento de uma
necessidade e o encontro com o objeto de sua satisfação.
Cronenberg
carrega suas tintas ao retratar não só o mundo corporativo, mas
especialmente a volatilidade dos mercados globais, a presença dos
gênios que viraram milionários ainda muito jovens e o vazio
interior que resulta na busca incessante por novas emoções.
Vemos
uma rua onde inúmeras limusines brancas estão estacionadas e um
jovem muito bem vestido começa um diálogo, a curta distância, com
o chefe da sua equipe de segurança. O curioso é que apesar de
próximos, eles se utilizam de pontos intercomunicadores inseridos em
suas orelhas. Este é Eric Packer (Robert Pattinson), o menino de
ouro do mundo financeiro, milionário, que diz ao chefe de segurança
que quer cortar o cabelo.
Começamos
a perceber a personalidade arrogante de Eric quando ele ouve o alerta
de que as ruas de Manhattan estão tumultuadas, algumas fechadas
porque o presidente está na cidade.
“– De
qual presidente estamos falando agora?” Pergunta Eric ao chefe de
segurança. Ele diz não se interessar pelo presidente do país e
simplesmente exclama: “– Eu preciso cortar o cabelo”! Qual é
o meu carro? Pergunta ele em meio a limusines, todas brancas,
aparentemente iguais!
Mas...
a sua limusine certamente está no páreo, competindo com todas as
outras: blindada, à prova de som, equipada com os mais sofisticados
aparelhos tecnológicos, ali ele monitora tudo e a todos e igualmente
é monitorado pelos seus agentes de segurança.
Eric
Packer vai recebendo pessoas e dialogando com elas, enquanto cruza
uma Manhattan agitada por movimentos anticapitalistas, em busca do
barbeiro que conhece desde a infância. Vivendo em um microcosmo,
Eric parece não possuir habilidades relacionais, parece um “objeto”
que troca informações com outros objetos. Não conseguimos perceber
nenhum traço de afetividade nele.
Existe
uma riqueza exuberante, excessiva, nos diálogos mantidos entre
Eric e seus visitantes.
Levando
para a perspectiva do simbólico virtual dos dias de hoje,
constatamos que na tecnociência e no tecnocosmo contemporâneos, o
papel da linguagem propriamente dita é cada vez mais limitado e
dissociado entre a pura extensionalidade e a pura metaforicidade,
que, tanto uma quanto outra não permitem uma autêntica relação
ontológica de sentido. A informatização da ordem simbólica afeta
todos os aspectos da linguagem natural a ponto de ser substituída
por outra coisa que é conforme as exigências do reino técnico. A
natureza material da linguagem é transformada: de vocal ou gráfica
(dócil à audição e à visão), o signo se torna eletromagnético
e, simultaneamente, torna-se transmissível nos meios radicalmente
diferentes do meio natural do homem.
Em
“O Mundo Sem Limite” de Jean-Pierre Lebrun, que é um marco para
a clínica psicanalítica do social, vamos encontrar questionamentos
graves acerca da contemporaneidade: “A
sintaxe se alinha no registro binário”,
diz ele. O discurso informático faz funcionar a máquina, organiza o
crescimento do reino técnico: não ajuda o homem a estar no mundo,
ele o integra no reino técnico como um vetor, um elemento funcional
deste. O computador é fundamentalmente não dialético, está
fundado no princípio exclusivo de não-contradição. Com o sistema
binário é preciso escolher, é constantemente sim ou não.”
Citaremos
para continuar nossas reflexões, Hannah Harendt, que é conhecida,
sobretudo por seus trabalhos sobre o totalitarismo; ela afirma que:
“Uma
das características fundamentais do sistema concentracionário não
é o fato de que “tudo é permitido”, mas de que “tudo é
possível”!”
Ela dá destaque especial à capacidade do homem do sistema
totalitário de se cortar da experiência que, no entanto, dá
consistência e sentido ao pensamento. Essa emancipação do
pensamento com relação a si mesmo, que equivale a uma saída da
condição humana, será paga com um pesado tributo: a ruína de sua
faculdade de julgar.
Voltando
ao filme, enquanto a limusine de Eric Packer vai atravessando as ruas
de Manhattan, ele vai recebendo ali mesmo, em um espaço minúsculo e
sofisticado, os seus visitantes, que parecem ao nosso olhar,
oráculos contemporâneos que tentam interpretar o mundo para ele.
As cenas vão transcorrendo como o funcionamento psíquico do
processo primário que caracteriza o inconsciente: a energia psíquica
escoa livremente, passando de uma representação à outra, (de um
quadro a outro, de uma cena à outra) pelos mecanismos de
deslocamento e condensação, visando à satisfação imediata do
desejo.
Existe
uma riqueza de informação nos diálogos que Eric mantém com seus
consultores. Percebemos uma pressão ansiogênica sempre perpassando
a trama, expressa por exemplo, no diálogo que tem com sua chefe de
Teoria: “Precisamosviver
no futuro, Eric!”
“É
o cibercapital que cria o futuro!”
“Tempo
é um ativo corporativo!”
Entretanto, começamos a perceber a condição de desamparo em que
ele se encontra, pois não percebe que não há garantias definitivas
para o que diz respeito à linguagem, sendo esta incapaz de fornecer
uma resposta última e inequívoca para questões essencias como a da
fragilidade da existência.
Cronenberg
revela em Cosmópolis o desamparo (hilflosigkeit)
correspondente à dimensão de fragilidade da linguagem, a sua
precariedade fundamental, dado que esta nunca consegue fornecer de
uma vez por todas as bases estáveis e definitivas de um mundo
simbolicamente organizado. A linguagem só é capaz de criar um mundo
à condição de continuamente recriá-lo.
Com
uma preocupação desproporcional com sua saúde, Eric faz check- up
todos os dias. Ele tem uma relação ambivalente e fragmentada com o
seu próprio corpo. É surreal a cena em que o médico examina sua
próstata, enquanto ele conversa com sua analista de finanças
(lembrando que a cena se desenrola dentro da limusine). Ao receber o
diagnóstico, o pobre rapaz rico fica preocupado: sua próstata é
assimétrica!
E
é, justamente por não perceber a assimetria da vida, por estar
olhando o tempo todo para o próprio umbigo, que a decadência de
Eric se torna possível. Vivendo de especulações financeiras,
parte para uma aposta de uma terrível incerteza na bolsa de valores,
e a trama do filme vai mostrando as angústias e contradições de
viver em um mundo dominado pelo fascismo econômico.
Eric
simboliza o que o capitalismo tem de pior. Em uma das cenas, fica
evidente a sua ganância e o quanto o outro não lhe importa.
Sua
consultora de arte, interpretada por Juliette Binoche, lhe oferece um
quadro de Marc Rotko. Packer não se interessa pela obra de arte. É
pouco. Ele quer comprar a capela inteira (onde está o quadro), que
pertence ao mundo.
A
cena de sexo entre sua consultora de arte e Eric, é no mínimo
curiosa! Vivem em um universo desenfreado de gozo, o que só revela a
outra face de suas experiências de desamparo. A limusine é um mundo
bizarro! Ali ele faz transações comerciais, transações
filosóficas, tem relações sexuais, bebe alcoólicos, come
amendoins! Há uma miscelânea de tudo! Contrariando um velho ditado
mineiro
que diz: "Onde se ganha o pão, não se come a carne!”.
Com
as palavras de Plastino (2002), “A
ambivalência entre Eros e destruição, característica da natureza
humana, delimita o contexto conflitante no qual se insere a
experiência do homem, tornando imprescindíveis as práticas sociais
capazes de, por um lado, permitir a administração democrática dos
conflitos e, por outro, orientar o processo de socialização dos
indivíduos de maneira a buscar a hegemonia do movimento erótico. A
inserção social do sujeito humano supõe a aceitação, obviamente
mais afetiva que racional, da alteridade, vale dizer, a compreensão
da existência de um outro diferente que constitui um limite para a
onipotência narcísica do sujeito.”
No vínculo primitivo, o sujeito constrói seu narcisismo,
indissociável da figura materna, na indiferenciação do eu ideal.
Quando não superada, essa posição inicial, o sujeito inibe seu
processo de socialização. Socialização que convém pensar como um
processo cujo ponto
de partida é
o eu ideal, seu percurso, as sucessivas experiências de castração
sofridas pelo sujeito, e seu desfecho,
a substituição do eu ideal pelo ideal do eu. Nessa perspectiva, a
experiência de castração é vista como humanizante por meio do
qual o sujeito é levado a abandonar a exclusividade do investimento
libidinal em seu próprio eu, a fim de aceitar a alteridade e os
limites representados por ela.” É
aqui que percebemos o comportamento anômalo de Eric.
Freud,
em “O mal-estar na civilização”, diz que o desamparo é uma
condição psíquica em que o sujeito não pode contar com a proteção
da figura do pai. Sentindo saudades dessa proteção que um dia ele
experimentou, o sujeito deve transpor um limiar crucial sem contar
com seu apoio, uma vez que a figura do pai, aquele que gera amparo, é
o representante psíquico do sistema normativo instituído.
Eric
busca reviver esse momento de proteção no esforço obstinado para
chegar ao barbeiro do outro lado da cidade, onde o seu pai o levava
desde criança
Aqui
faremos um recorte: se antes buscávamos a eternidade pela adoração
dos Deuses, hoje acreditamos encontrá-la ocupando o lugar da própria
divindade. A mídia que, no mundo globalizado, fornece informações
aos quatro cantos do planeta, em uma velocidade espantosa, nos
confere a ilusão da onisciência. A tela do computador e a internet
permitem que estejamos em vários lugares e com várias pessoas ao
mesmo tempo, o que nos faz acreditar em nossa própria onipresença.
A capacidade de criar e recriar rapidamente novos objetos leva-nos a
crer em nossa ilimitada onipotência.
Pensamos
que a presença ausente de um governante (presidente) no filme nos
remete a algumas reflexões: algumas vezes somos levados a crer que o
saber leva espontaneamente ao poder, esperamos que se encontre em
posição de autoridade aquele cujo saber é o mais competente,
erroneamente produzindo a crença de que esse saber esclarecido é a
melhor garantia para bem governar.
Entendemos,
conclusivamente, que nenhum saber, mesmo que amplamente esclarecedor,
pode autorizar o lugar do governante. Quando o sábio tem acesso ao
poder, se torna rei; troca de ofício e deixa de ser sábio, pois o
lugar do saber não é o lugar do poder.
CULTIVAR
O MAL-ESTAR OU CIVILIZAR A CULTURA?
"Deixa-me
sofrer o tremendo
castigo
de minha temeridade!
Por
muito que eu sofra,
nunca
serei privada de uma bela morte."
Sófocles
- Antígona, I, 20
Eric
Packer tem algo estranho do “macho-alfa” e do pai da horda
primeva. Ele casou-se com Lucile sem conhecê-la direito, mas como
era um bom contrato familiar, já que a família dela é muito rica
também, dá-nos a impressão de ter sido um “bom negócio”.
Percebemos que o sexo com sua esposa é raro, mas ele busca, ao mesmo
tempo, fazer um exercício frenético de sua sexualidade com outras
mulheres, como por exemplo, com a agente novata de sua equipe de
segurança pessoal. Eric quer viver intensamente as emoções, mesmo
que elas sejam sórdidas. Depois de um contato sexual com ela, ele
tenta convencê-la a atirar nele com uma arma de alta voltagem,
querendo antecipar a sensação mortal. Ao mesmo tempo que desafia a
morte, ele sente que tem o controle sobre ela.
Vamos
acompanhar uma cena onde um ativista acerta uma torta com chantilly
no rosto de Eric. É interessante este manifesto. (Lembrei-me do
“beijoqueiro dos anos 80”) O confeiteiro Andre Petrescu quer
mostrar ao mundo as falhas de segurança e acertar os ícones do
capitalismo, representantes da ordem em vigor. Ele relata que já
alvejou várias personalidades. É curioso o olhar de gozo desse
confeiteiro! Ali a intenção é de exposição e lançamento do
sujeito no grotesco. “A
minha missão é sabotar o poder e a riqueza.”
“Eu
deixei passar o presidente para te acertar! Você é um manifesto
importante, difícil de mirar! Sou um pintor gestual das tortas de
creme!
Estamos diante daquilo que Birman chamou de sociedade do espetáculo.
Eric
vivencia a experiência do sinistro (estranho), quando percebe que
pode estar em ameaça real de assassinato. A angústia do real se
produz pelo desmapeamento provocado no registro do eu. Sua
subjetividade entra na incerteza e na imprevisibilidade, uma vez que
não pode mais contar com seus operadores de regulação.
Inicialmente percebemos Eric entrando em um processo de
despersonalização e desrealização, desmapeando os enunciados
instituídos sobre ele e o mundo.
A
primeira vez que percebemos alguma emoção em Eric é quando ele se
enfurece com o confeiteiro. Ódio. Um ódio que irrompe com toda
força e o torna violento. Então ele surra Petrescu. E...
estranhamente, ele experimenta do chantilly que ainda ficou em seu
rosto.
Quando
ele percebe que não tem controle sobre os códigos de segurança das
armas compradas para protegê-lo e que está assujeitado à proteção
e ao risco simultaneamente, ele se vê sem saída e comete um
assassinato: na suspeita persecutória de que seu chefe de segurança
também pode querer matá-lo, ele o mata primeiro!
Quando
chega ao barbeiro, encontramos um fato: ali, naquele cenário, nada
mudou! Tudo está como antes esteve: a barbearia, o barbeiro, as
cadeiras, espelhos, calendários na parede, tudo ali permanece da
mesma forma de quando frequentava o local com seu pai.
Enquanto
está ali, o barbeiro lhe conta que seu pai o obrigou a entrar no
carrinho (um brinquedo sobreposto à cadeira de barbeiro para
distrair crianças) e ele se recusou a entrar ali. Então ele foi
colocado em uma cadeira tradicional para adultos e permanecer ali
enquanto seu cabelo é cortado. Aqui entra uma questão: ele
reconhece ou não a lei? Onde entrou ou não o interdito paterno?
Na
contemporaneidade, não podemos mais nos ater a noções estanques de
passado, presente e futuro. Vivemos, sobretudo, de relações
dialéticas entre os vários estratos do tempo. O presente é futuro
do passado; o futuro é o presente-passado de nossas fantasias; o
passado é matriz de todos os outros tempos e, como toda mãe, nos
acompanha pela vida afora.
Quando
seu motorista denuncia a ausência do chefe de segurança, o barbeiro
preocupa-se e lhe oferece uma arma. Eric diz que precisa sair, sem se
importar com o próprio cabelo que está cortado apenas de um lado,
ficando assimétrico!
Eric
agora não se preocupa mais em apostar contra as moedas nas bolsas ou
perder sua fortuna. Ele parece obstinado a encontrar quem quer
matá-lo. Nesse ponto do filme nos perguntamos
quem quer promover o assassinato de Eric e por quê? Ele sabe que
existe alguém espreitando-o, que o conhece e que sabe quem ele é, o
que faz, sabe tudo sobre sua vida. Mas, quem é esse outro
desconhecido para ele mas que o conhece tão bem? Conhece seus
sistemas de defesa e segurança? Quem decifrou seus códigos e
deixou-o vulnerável?
Quando
o motorista vai guardar a limusine porque a noite já vai alta, Eric
o acompanha, ele quer saber o que acontece quando todos dormem. Para
onde vão as limusines?
E
aqui entramos em um momento de clímax do filme.
Na
rua, um tiro ecoa pelos ares e acerta um táxi perto de Eric. Ele
“sabe” que está perto de encontrar seu antagonista.
O
cenário é desolador: miséria, decadência, caos e suspense.
Eric,
agora, vai perseguir aquele que o ameaça.
Vamos
entrar com ele em um prédio imundo... e arrombar uma porta. Com a
arma em punho Eric vê um homem com um pano na cabeça sair de um
banheiro! Ele é Richard Sheets. Sheets, com a devida tradução para
o português: merda! (Aqui é Paul Giamati, em uma interpretação
magistral.)
"O
que faz aqui?”
Questiona Packer.
“Não
é essa a pergunta!”
Diz o homem.
A
cena é fascinante pois o homem, tal como a Esfinge para Édipo,
propõe um enigma à Eric !
“Quero
matá-lo para fazer algo importante na vida! Você não me reconhece?
Diga
quem pensa que sou.”
Eric
não sabe. Ele diz que ele próprio havia se tornado um enigma.
“Não
consegui perceber uma tendência... Não consegui entender o
Yuan!(nome
de uma moeda e que naquele momento tem a supremacia sobre as outras)”
“Então
você pôs tudo a perder? Questiona
Richard Sheets que não suporta ser chamado por este nome, e quer ser
um outro, Benno Levin.
E
o diálogo vai seguir um curso sobre a vida e a morte.
Este
homem, na verdade, trabalhou com análise de moedas na Packer
Capital, era funcionário das empresas de Eric, diz que de qualquer
maneira precisa matá-lo, tem motivos justos para isso, a começar
pela opinião de que ele é repulsivo e insanamente rico.
“O
crime não tem consciência! Seu crime está na sua cabeça! A
violência precisa de um fardo!”
Aqui
Eric ardilosamente vai procurando palavras para operacionalizar
Sheets, como se fosse sorrateiramente acessando seus significantes de
maneira a controlá-lo.
Surpreendentemente,
Eric atira na própria mão! Fazendo-se então estigmatizado!
Richard
prontamente pega um tecido para ajudar a estancar o sangue. E diz que
Eric fez as análises do Yuan seguindo os padrões da natureza, a
harmonia cruzada, o número áureo. E diz que Eric não conseguiu
enxergar que a resposta estava em seu próprio corpo, a resposta
estava em sua próstata! O Yuan não tinha nenhuma tendência de
simetria! O yuan era assimétrico como sua próstata e ele não
conseguiu perceber.
“Mas
o meu fungo manda matá-lo!" Grita Sheets.
“Você
conversa mesmo com seu fungo? Eu já vi pessoas que conversam com
Deus!..."
Manipula perversamente Packer.
“Eu
queria que você fosse o meu Salvador!"
Exclama Richard.
Nesse
ponto, Sheets, mesmo armado, já foi capturado pelo narcisismo
aspirante de Eric, que num ato, em um simulacro, se torna um deus!
Conseguiu acesso aos códigos delirantes dele. Eric, com um estigma
na mão, com um furo no real se identifica com o próprio Salvador
dos Cristãos
Concluindo
para não concluir
Cosmópolis
retrata toda a dimensão trágica da experiência humana do
sofrimento – pathei
mathos,
um sofrimento que comporta a possibilidade de transformação do
vivido em sabedoria.
Rosália
Maia é psicanalista, psicóloga.
Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica. Pesquisa as
novas formas de subjetivação na atualidade.