quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

EU, MAMÃE E OS MENINOS : Dizer-se homem ou mulher, eis a questão

de Marisa De Costa Martinez

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Eu, mamãe e os meninos (Les Garçons et Guillaume, à table!) é um filme autobiográfico, premiado na França. O ator interpreta ele mesmo e sua própria mãe. Dado bem interessante, pois tem tudo a ver com a história do filme, o qual apresenta a questão da escolha sexual e do dizer-se homem ou mulher. Em que medida os sujeitos fazem suas escolhas ou são determinados pelo desejo do Outro?
O título original do filme é o grito da mãe: “Os meninos e Guillaume para a mesa!”, deixando claro logo de saída a forma como sua mãe lhe tratava, diferentemente de seus dois irmãos mais velhos – os meninos. Apesar do grito aparecer em apenas uma cena do filme, ele faz jus ao título por representar precisamente sua essência, qual seja, o desejo materno. Com a psicanálise, podemos pensar o quanto somos condenados pelo discurso dos pais. Será? Talvez possamos dizer com o filme que somos não-todos efeitos do desejo do Outro parental.
A teoria lacaniana apresenta que há alteridade na constituição do sujeito. A essência do ser humano é justamente constituir-se pelo Outro, no inconsciente. De que maneira o Outro influenciaria quando um sujeito diz-se homem ou mulher? O enredo do filme é justamente sobre o impasse do sujeito diante do desejo de sua mãe. Ela, mãe de três filhos, desejava ter uma filha menina. Isso fica claro não só a partir do título do filme, mas também pelo diálogo inicial entre mãe e filho, em que Guillaume diz: “Mamãe, dei de cara com meu primeiro amor hoje! Lembra da Ana?”, sua mãe responde: “Como ele está?”. Não precisamos dizer o quanto esses lapsos representam um desejo inconsciente. Guillaume chega a dizer que o único que não queria que ele agisse como menina era o seu pai, e conta: “Mamãe só compra roupas de menino para mim para que papai não fique bravo”. Esse não o queria alienado ao desejo da mãe. O filme então se segue com inúmeras tentativas frustradas do autor responder desse lugar em que é colocado. Inclusive uma pessoa cai no erro de dizer-lhe que deveria experimentar relacionar-se com homens a fim responder sua questão sobre ser homem ou mulher, já que ele – adulto – nunca tinha se relacionado com ninguém.
No decorrer do filme não fica claro se Guillaume considerava-se menino ou menina, evidenciando assim o seu conflito. Embora possua trejeitos deveras afeminados: anda, fala, gesticula como sua mãe ao passo que repudia os esportes viris que tanto atraem seu pai e irmãos. A dúvida nos leva a pensar em uma estrutura neurótica, já que ele demanda o tempo todo ao Outro as seguintes questões: “O que quer de mim?”, “Quem sou eu?”. Exemplo disso é a cena em que uma moça espanhola nega-se a dançar com ele a sevilhana, pois a dança seria para dançar com homens e não entre duas mulheres. Imediatamente Guillaume questiona-lhe se ele parece com uma mulher ao que ela responde positivamente. Ele, então, conclui que sua mãe adorará saber disso! O protagonista tem sua voz confundida com a de sua mãe inúmeras vezes: por sua avó materna, pela cozinheira e por seu pai. Guillaume, em uma fixação, não só imitava os trejeitos de sua mãe, como a idealizava na mesma proporção, dizendo: “você é sempre linda! (...) Minha mãe é maravilhosa (...) Confesso que ela não tem nenhum defeito!” É como se ele nos dissesse que é preciso que um homem se afaste de sua mãe para se aproximar de uma mulher. Nesse sentido, entendemos que “Primeiramente, para tornar-se homem, o menino deve separar-se, em maior ou menor medida, da fixação ao objeto materno. Tanto é assim que tal fixação será diretamente proporcional ao obstáculo que encontrará no momento de se relacionar com as mulheres”. (MONSENY, 2004, p. 90). Nas palavras de Lacan: “Que uma mulher, aqui, só sirva ao homem para que ele deixe de amar uma outra” (1972/2003, p. 469), neste caso, a mãe.
Em outra passagem do filme fica nítida tamanha alienação ao desejo materno, quando em sua pergunta sobre o que o Outro materno quer dele, depara-se com a irritação de sua mãe. Não entende como ela não está feliz se ele é uma menina como ela, mas, sobretudo, como ela desejava. Pensa então que deve ser porque ele se parece demais com ela. Assim, para deixá-la feliz, passa a observar todas as mulheres com suas singularidades e admirá-las por isso – uma a uma – quando se dá conta que A Mulher não existe. Desta forma, Guillaume começa a abandonar sua posição de falo para sua mãe, e além disso, passa a gostar das mulheres. Cito novamente Monseny: “para que um homem goste de uma mulher é preciso gostar antes das mulheres” (2004, p. 96).
Em alguns momentos Guillaume parece ser convencido de que é uma menina. Ao chegar de férias, em casa, chora na presença da mãe pois estava apaixonado por um rapaz que gostava de uma garota. Com dificuldade, sua mãe lhe diz que há de existir outros homossexuais, meninos que gostam de meninos e são felizes. Por uma questão lógica, ele conclui surpreso que para ser homossexual era preciso inicialmente ser homem, enfrentar o medo que tinha de cavalos e servir ao exército. Nesta cena, ineditamente, sua mãe o nomeia como menino. Assim, o desejo da mãe de ter uma filha, por fim, desencadearia que seu filho caçula fosse visto como homossexual também por todos – terapeuta, colegas de escola e irmãos.
O impasse da sexualidade fora relacionado, tanto por Freud quanto por Lacan, à histeria. Nosso interesse aqui não é realizar um diagnóstico estrutural de Guillaume, até porque não se trata de um caso clínico. Nossa intenção é discorrer sobre algumas contribuições teóricas importantes para a análise do filme. Freud em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” lembra de uma paciente histérica, a qual de um lado tentava cobrir-se segurando seu vestido como mulher, enquanto por outro lado tentava arrancá-lo como homem. Freud diz que existe uma disposição bissexual que é humana. Exemplo disso é o que ocorre na masturbação, quando em uma mesma fantasia estão presentes sentimentos tanto do homem quanto da mulher. O autor conclui: “No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual” (1908/2006, p. 154). Nesse mesmo sentido, Freud adverte em outro texto que a atividade auto-erótica das zonas erógenas são idênticas em ambos os sexos e retoma a temática da bissexualidade afirmando: “Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade, passei a considerá-la como o fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta, dificilmente se poderá chegar a uma compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher”. (1905)
Lacan, por sua vez, afirma que não haveria nada no psiquismo “pelo que o sujeito se pudesse situar com ser de macho ou ser de fêmea” (1964/1988, p. 194). Deste feito, cada sujeito deverá constituir-se e construir a partir de sua cadeia de significantes sobre sua escolha sexual e seu modo de gozar.
Além disso, o filme coloca a questão do que é a verdade para a psicanálise. O fato do filme ser um relato autobiográfico, isto é, baseado em fatos reais, não implica em ser um documentário. Fato esse que o deixa ainda mais interessante: o filme tal qual a realidade psíquica engendram uma verdade ficcional.
Faz-se necessário ainda apresentar o final do filme: Guillaume telefona a uma amiga para ir à casa dela. A mesma diz que receberá somente suas amigas mulheres para um jantar. Com essa resposta, sua amiga já o coloca no grupo dos homens. Apesar disso, ou justamente por isso, ele insiste e vai ao jantar. Naquela noite, surpreendentemente, ele tem um bom encontro com o amor de sua vida, segundo ele “a mulher mais linda do mundo”, curiosamente na mesma noite em que sua amiga inverte a mensagem de sua mãe, chamando-os para jantar: “Meninas e Guillaume para a mesa!”. Quinet lembra-nos que posição sexuada e escolha de objeto são de âmbito totalmente distinto (2013, p. 133). Estar na posição feminina ou masculina é uma coisa, ter um homem ou mulher como objeto sexual é outra”. A posição sexuada nos diz de um elemento todo fálico ou um elemento não-todo fálico. Deste modo, Guillaume pode ter uma posição não toda-fálica e mesmo assim ter uma mulher como objeto de escolha amorosa. Não são esses descompassos que vemos na clínica o tempo todo?
Alguns críticos colocam o final do filme como uma heteronormatividade forçada. Com Lacan, prefiro pensar paradoxalmente que uma escolha mesmo que forçada é sempre uma escolha. Assim sendo, podemos escolher por algo diferente do que o Outro espera. Em psicanálise, não pensamos pela lógica de causa e efeito, mas sim em sujeitos responsáveis por sua sexualidade, seja ela homo ou heterossexual, que podem escolher por responder tal e qual desejam dele, ou não. Escolher de forma oposta ao desejo de seus pais, seria continuar preso a ele? O outro lado da mesma moeda? Mais do mesmo? A esse respeito, Lacan nos lembra no seminário 11: “as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro. [...] o que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. [...] A sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta” (p. 194). No entanto, como ser homem ou mulher é um enigma que não pode ser respondido pelo Outro. Assim, somos levados a permanecer com nossa hipótese de que a escolha é cada sujeito. Até porque não há ninguém com uma “sexualidade bem resolvida”. Por isso que o Outro não responde ao sujeito. Sequer ele tem a resposta. Nesse sentido, seja o sujeito, seja o Outro, homem ou mulher, somos sempre seres faltantes. Não é esse o legado de Freud com sua teoria da castração?
Deste modo, a falta de resposta do que é ser homem ou mulher aponta para o mal-entendido do discurso. Daí a escolha do tema dizer-se em detrimento do ser homem ou mulher. Colocar a escolha do sexo como inerente ao dizer é aproximá-la de sua estrutura de linguagem e portanto afastá-la da ordem de um naturalismo biológico. É justamente por ser de ordem simbólica que a sexualidade dá margem à dúvida. Assim, a psicanálise “enquanto experiência e enquanto ética do bem-dizer, parte do princípio de que o sujeito tem algo a dizer que ninguém mais poderia dizer em seu lugar” (JORGE, 2013, p. 26). Assistindo ao filme pudemos escutar o desejo de Guillaume, que foi para além do desejo de sua mãe. Guillaume ensina-nos que é possível não se render ao imperativo desejo do Outro. Porém, sua mãe não fica muito feliz com isso. E questiona-o ao saber de sua escolha: “100% hetero?”. Diferentemente, em psicanálise sabemos existe uma disposição bissexual humana (1908/2006). Portanto, a propaganda do desodorante com partículas de cabra macho nos enganou: o homem homem, não existe!
O fato de haver uma escolha subjetiva sexual tira o sujeito de seu lugar de vítima do desejo de seus pais. Essa é a ética da psicanálise, a qual “lida com o sujeito responsável. A primeira retificação subjetiva, portanto, a ser feita para com todo sujeito hétero ou homossexual é implicá-lo em sua forma de gozo e fazê-lo responsável por sua sexualidade” (QUINET, 2013, P. 131).
Lacan, em Instancia da Letra, ao inverter o algoritmo saussuriano, faz uso não apenas da famosa árvore, mas também de duas portas com letreiro: homem e mulher. Deste modo o autor discorre sobre a soberania do significante em detrimento do significado. Em última instância, homem e mulher são apenas significantes que nos servem para clarear em que porta de banheiro devemos entrar. Deste modo, só podemos concluir fazendo uso de nosso título do trabalho que é uma questão de dizer-se em não de ser homem ou mulher. Assim, nós, psicanalistas, só podemos é escutar cada sujeito com sua história, sua sexualidade e seu gozo, um a um. Diferentemente do que se parecia, Guillaume passava pelo tortuoso caminho de “como chegam os homens a interessar-se pelo Outro sexo”, não de forma direta, mas sim, através de um semblante. (MONSENY, 2004)
Para finalizar, com Lacan:

Não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz coletividade, e que chamei de os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes” (LACAN,1972-1973/2008, p. 38).

Trailer do filme

Marisa De Costa Martinez é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano - MS. Mestre em Psicologia pela UFMS.

domingo, 30 de novembro de 2014

ÁLBUM DE FAMÍLIA (August: Osage County)

de Olivan Liger

O filme do diretor John Wells teve duas indicações ao Oscar, Meryl Streep como melhor atriz e Julia Roberts como melhor atriz coadjuvante.
O cenário são as pradarias do condado de Osage em Oklahoma, Estados Unidos. Superfícies planas e secas. Agosto: condado de Osage é o título do filme. Um filme duro, seco e quente como um verão nas pradarias de Oklahoma, onde se confirma a natureza destrutiva do ser humano e através dessa natureza destrutiva e auto-destrutiva, histórias se constroem, vínculos se perpetuam.

Como o título em português, o filme vai nos revelando os traços, a história construída e segredos da família, como se folheássemos um álbum onde cada foto nos revela a história da construção dos vínculos que (des)unem os personagens desse filme.
-”A vida é muito longa” (T. S. Eliot) é a frase que Beverly, o patriarca, fala no início do filme e começa a narrar a sua história. Pouco a pouco, vamos entendendo que a vida é muito longa, quando se abre mão do desejo. Bev é casado com Violet, um casamento que segundo Bev - “Foi nosso acordo; um parágrafo do contrato matrimonial. O fato é que minha esposa toma pílulas e eu bebo”, ou um casamento de sintomas mediado pela predominância da escolha narcísica de objeto em ambos. Ainda na narrativa inicial, Bev fala para a empregada, Johnna, que está contratando para tomar conta de Violet: - “Os livros como meu último refúgio”. Abrir mão do desejo implica na impossibilidade do investimento libidinal nos objetos e confronto com o indizível do real, a falta. A bebida e escrever poesias são aquilo que condensou tudo o que restou do desejo e encobriu a falta em Bev.
Violet ingere todo tipo de pílulas e no decorrer do filme, fica claro a sua dependência química instalada há anos. Tem um câncer de boca que curiosamente nos sugere a ligação com o oral, com a fala e a palavra. Fala para a filha mais nova Ivy: - “Minha boca está ardendo para caramba, minha língua está em chamas”- significantes que traduzem o seu veneno e o quanto vai tentando destruir cada um a sua volta, de forma ferina e cruel, como um dragão que cospe fogo e destrói tudo ao seu redor, mas ao destruir o outro, se destrói.

O casal tem três filhas, a mais nova Ivy, a filha do meio Karen e a mais velha Bárbara. Cada uma das filhas usou de defesas próprias contra a disfuncionalidade da própria família onde encontramos um homem/pai depressivo, alcoólatra e desistente da vida e uma mulher fálica, controladora, viciada em medicamentos e dominada pela pulsão de morte, evidenciada na sua agressividade contra si mesmo e principalmente contra todos à sua volta. Ivy é a filha que vive e cuida dos pais, na tentativa de ser reconhecida e amada, de deixar de ser o lixo da mãe. Karen, uma mulher madura porém regredida que se comporta como uma adolescente todo o tempo e que encontra no perverso Steve, 10 anos mais velho, a idealização do homem perfeito que casará e passará a lua-de-mel em Belize, seu único objetivo de vida. - “Eu vivo o agora”, este é o mote de Karen, como uma adolescente perdida e apaixonada. Bárbara, segundo a descrição do marido que a traiu com uma mulher bem mais jovem, razão de estar separada desde então: - “Você é tão moralista, você é atenciosa, mas não é acessível. Você é ardente, mas é dura”, é a filha que foi favorita do pai e que “bate de frente” com a mãe. O significante “bate de frente” faz jus ao ataque à mãe durante o jantar do funeral de Bev, o qual planeja e cumpre o suicídio. Bárbara tem uma filha adolescente que fuma maconha e que reproduz na sua relação com a mãe, a relação de Barb com Violet.

Outros personagens rodeiam a família nuclear do filme, a irmã de Violet, Mattie Fae, seu marido Charlie e o filho Little Charlie. Esta família imita a família nuclear. Uma mulher fálica que inferioriza o filho todo o tempo, tratando o como um deficiente. Little Charlie tem algo em comum com Ivy, tenta todo o tempo ser perfeito para responder a demanda da mãe e assim ser reconhecido, se identifica com o pai afetivo, mas sem força de lei.
Assim, Violet, Barb e Mattie Fae são desenhadas como mulheres duras e fálicas.
O jantar do funeral é um dos pontos cruciais do filme. Violet, sob efeito de medicação, faz todo tipo de ataque violento a cada um dos membros da família. Fala da infância difícil dela e do marido: - “Este é o nosso problema. Tivemos uma vida difícil demais”. Sugere que o mundo lhe deve algo, lhe deve honras pela história difícil, lhe deve reconhecimento, lhe deve autoridade. Escancara-se nesse momento a luta pelo poder, pelo falo entre ela e a filha Barb. Não é uma mãe, exceto pela condição biológica, é uma competidora a quem a filha se identificou. Barb a ataca fisicamente para tomar-lhe as pílulas e diz - “Eu é que mando agora”. Violet nos reporta ao mito de Chronos, que nunca deixa seus filhos assumir o trono. Quando estão prontos para assumir o trono do rei, este os devora para nunca permitir a circulação do falo.

Numa conversa entre irmãs, vai se desvendando segredos como a histerectomia de Ivy devido a um câncer e sua relação afetiva com Little Charlie. Ivy é o bode expiatório da família, o lado frágil que não conseguiu deixar o ninho, o sintoma familiar, e sonha abandonar tudo aquilo em troca de uma vida de amor com Little Charlie em Nova York. Ninguém quer a responsabilidade de cuidar da mãe tirana e cruel e nessa conversa, se referindo ao vínculo com as irmãs, Ivy diz: - “Não sinto que seja uma ligação muito forte.” Um engano do sentir... uma verdade se idealizarmos relações amorosas e suaves como única forma de criar vínculos, mas os vínculos se fazem de outras formas, com afetos como raiva, medo, submissão e destrutividade. É uma ligação forte, muito forte que até então foi regida com maestria por Violet e Bev. Ligação forte pela competitividade da mãe e filha, pela tirania da mãe sobre as filhas, pela demanda por um pai ausente e submisso que interdite a mãe, imponha a lei e faça o falo circular. Ligação que transcende o espaço e o tempo, pois mesmo distante Karen busca o pai capaz de valorizá-la em Steve, de quem espera ser a escolhida para o casamento e uma lua-de-mel em Belize. Presas pela história todos são regidos pela compulsão à repetição da pulsão de morte.

Numa cena seguinte, Charlie repreende Mattie Fae pela sua destrutividade em relação ao filho, única cena que se faz lei. E mais uma parte da história vai se revelando quando Mattie conta a Barb que Little Charlie é irmão dela e não pode estar envolvido com Ivy. Little Charlie é a lembrança viva de um deslize, de uma imperfeição, de uma traição da mãe, por isto precisa ser combatido, destruído tão cruelmente. É o rastro de uma falha que precisa ser apagado. É o obstáculo ao recalque que faz da lembrança, o ato vivo que se presentifica todo o tempo para Mattie Fae.
Como uma chama de vela que vai se tornando uma tocha e iluminando toda a história, os segredos e as patologias de cada um vão aparecendo. Há uma permanente ameaça a integridade psíquica e física dos membros dessa família. Jean, 14 anos, filha de Barb fumando maconha e aceitando o assédio do perverso Steve são testemunhados pela empregada. Karen, usa da defesa de negação para não desmantelar a sua idealização de Steve como um homem bom que a escolheu. Prefere sustentar a ilusão do casamento e a lua-de-mel em Belize a admitir a estrutura perversa de Steve. É o que lhe resta pois não foi a favorita do pai e é ignorada todo o tempo pela mãe. Saem assim da história.
No momento seguinte, Ivy decide contar para Violet sobre seu namoro com Little Charlie e Violet lhe diz que são irmãos, que sempre soube disto. Uma vitória para Violet que se mostra no controle todo o tempo, nada lhe passa oculto, está sempre um passo adiante de todos. Parece não perceber o desmoronar da filha frente a verdade de que seu amado é seu meio irmão. Goza por mostrar seu controle, seu sintoma, mas se trai ao deixar escapar sobre o bilhete que Bev lhe deixou antes de morrer, no qual lhe contava o hotel que estava e sua intenção de suicídio. Violet nada fez para impedir. Primeiro foi retirar todo o dinheiro do casal no cofre do banco e quando ligou para o hotel, Bev já tinha partido no seu barco para morrer afogado no lago. Queria se livrar da presença masculina para que triunfasse o seu poder feminino? Para Bev, a vida era longa demais. Para Violet, a vida parecia curta para dominar a todos e a tudo. Tenta responsabilizar Barb pelo suicídio do pai que ressentido do seu abandono, abandonou o estatuto de sujeito desejante. Era Bev o duplo do espelho que ameaçava o trono narcísico de Violet? Ou diante de sua resignação a submissão, deixou de ser importante para desafiar Violet? E na sua onipotência narcísica, Violet diz - “Quando não restar mais nada, quando tudo se for e desaparecer, eu estarei aqui.”

E quando nada mais restou e todos se foram, Violet estava lá para se render nos braços acolhedores da empregada Johnna, com quem não precisa competir, com quem não se sente ameaçada e desafiada a mostrar seu controle e poder, para quem a sua fragilidade e solidão não são armas usadas contra si.
Poderíamos entender a necessidade de controle e poder de Violet como a defesa ao delírio persecutório decorrente de anos de dependência de medicamentos ou ainda refletir acerca de uma forma de assegurar o não retorno a uma história de vida miserável e cheia de sofrimentos.

Assim é um álbum de família, onde registros indeléveis das mazelas de cada um aparecem nas fotos envelhecidas e desvanecidas pelo tempo e a história vai se construindo a cada foto/cena e mostrando a condição humana de destrutividade e angústia como elementos estruturantes e vigentes.

trailer oficial


Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.

domingo, 16 de novembro de 2014

Relatos Selvagens (ou simplesmente atuais?)

de Priscilla Cheli
Dividido em seis histórias, com começo, meio e fim, Relatos Selvagens, traz uma reflexão a cerca de questões mais que atuais, com as quais nos deparamos todos os dias, seja por meio de uma notícia de jornal, seja por algum personagem da vida real.


As histórias se dão em contextos diferentes, porém, em seu âmago, trazem a vingança e a violência como protagonista, nos convidando a refletir sobre a ética de cada um e nos colocando diante da pergunta: “o que você faria se...?”
Num estilo tragicômico, o filme, dirigido pelo argentino Damian Szifron e produzido pelo espanhol, Pedro Almodóvar, tem uma configuração diferente da que estamos habituados a assistir. Seis histórias que não se cruzam, não se excluem, e nem se contradizem, mas que em sua efemeridade, tocam a singularidade da ética de cada um que as assiste.
Tal como o formato que o filme se apresenta, tentarei fazer um breve relato das histórias, ressaltando seus pontos cruciais, separadamente.
1 - Fazendo uma alusão aos casos de meninos que abriram fogo em escolas americanas, Gabriel, comissário de bordo, reúne em um vôo, todos aqueles que ele julga serem seus malfeitores e leva a aeronave à queda.
2 - Uma garçonete se depara com um cliente que arruinou sua família e está pleiteando um cargo político. Sua colega de trabalho sugere que o envenenem. Eis o dilema!
3 - Um homem, dirigindo seu carro de luxo, tenta ultrapassar outro homem, num carro caindo aos pedaços. No momento em que consegue, abre o vidro e o xinga. Minutos após a ultrapassagem, seu pneu fura. Ele se surpreende com a chegada daquele que ele outrora agrediu, pronto para lhe dar o troco. A clássica cena de briga de trânsito, que traz com ela, nesse relato, a arrogância versus a fragilidade do homem rico, tal como a fúria e a ira que aparece no homem pobre, quando os dois se encontram numa situação de igual para igual.
4 – Um engenheiro especialista em implosões se vê vítima do sistema de trânsito, e após tentativas de ser ouvido sem sucesso, resolve criar uma explosão no pátio de estacionamento para veículos guinchados, lugar para aonde seu carro havia sido levado. Ele acaba se tornando uma celebridade nos noticiários pelo ato que talvez muitos tenham vontade de cometer.
5 – Filho de um milionário sai com o carro do pai, atropela uma mulher grávida e foge. Os pais, para pouparem seu filho da responsabilidade, têm a ideia de sugerir que o caseiro, em troca de dinheiro, assuma o crime. Essa trama aponta a corrupção da polícia, a “esperteza” de alguns advogados, e o dinheiro como uma forma de escapar da lei.
6 – Noiva descobre traição do marido durante sua festa de casamento, entregando-se ao deleite de ameaçá-lo e vinga-se de um modo que seu sofrimento seria muito maior que o dela.
Esse filme ressalta, pelo menos para mim, dois possíveis caminhos para percorrermos. Um nos leva a reflexão sobre o inusitado e a resposta que dele advém quando a palavra não é convocada. O outro, nos coloca em direção de olharmos para a responsabilização de cada um diante de sua própria singularidade.
Podemos observar que o inusitado se une à urgência de uma escolha, onde os envolvidos não têm espaço para ponderar, argumentar, problematizar ou relativizar. Com a subtração da palavra, o ato se impõe. A certeza entra onde a palavra é subtraída. A palavra traz consigo a possibilidade da dúvida, e no filme, o que suscita é que na ausência dela, da palavra, aparece o que o autor nomeou de selvagem.
A lei do mais forte é o que rege a lei da selva, pelo menos é isso que sempre ouvimos falar. Neste caso, podemos pensar que a palavra é a possibilidade que temos de mediar o selvagem, o selvagem do próprio gozo.
Outro ponto a ser destacado diz respeito àquilo que psicanalistas, filósofos, educadores, entre tantos outros, se dedicam, ou seja, sobre o tempo em que vivemos. Sabemos que com a queda de uma sociedade paternalmente orientada, onde as leis eram mais claras, definidas e delimitadas, e portanto, os sujeitos tinham modelos socialmente admirados a serem seguidos, hoje nos deparamos com perguntas mais singulares, ou seja, como cada um se coloca frente às contingências.
Surge assim, a formação de uma nova ordem simbólica. Se antes éramos orientados pelo falo, e hoje não mais, quais seriam os efeitos desta nova ordem simbólica?
Um deles, sem dúvida, é a gama de opções e possibilidades que se apresentam a cada um de nós. Hoje podemos questionar mais livremente e escolher um caminho, bem como elegê-lo como uma direção a ser seguida. Mas não podemos nos esquecer que as angústias, frente a tantas possibilidades, podem ser proporcionais às opções. A falta da orientação falocêntrica implica necessariamente na responsabilização frente às angústias, prazeres e conseqüências advindas das escolhas e posicionamentos de cada um.
O filme nos coloca frente a essa questão de maneira direta e nos tira o riso justamente quando cada espectador se encontra com o seu próprio gozo. O que você faria em cada situação apresentada? O que justificaria, para você, tirar a vida de alguém? Para ser ouvido por um mundo surdo, vale uma transgressão? Ou ainda: por um filho, vale incriminar alguém?

Seriam horas e horas de discussão que provavelmente não nos levaria a Um lugar, afinal, Lacan bem nos disse: a Verdade não existe. Portanto, só nos cabe interrogar a nós mesmos, um a um, a respeito daquilo que suportamos de nossos próprios atos, se podemos nos responsabilizar por eles e, por fim, o quanto podemos suportar de nossa própria singularidade. Aliás, papel esse ofertado pela escuta psicanalítica.
Trailer Oficial do Filme

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

domingo, 2 de novembro de 2014

Garota Exemplar (?)

de Fernanda de Barros Miranda

Não é exagero eu dizer, que desde o maravilhoso longa de Almodovar: "A pele que habito", um filme não me deixa tão pensativa, tão angustiada, e por que não dizer com tanto medo.

"Garota Exemplar, adaptação do livro de Gillian Flynn, que por sinal é roteirista do filme, traz o suspense e as manobras que os fãs de David Fincher já estão acostumados a ver em série como "house of cards", ou grandes sucessos de bilheteria como a trilogia "Millenium", ou "O curioso caso de Benjamin Button".

Amy Dunne interpretada pela linda Rosamund Pike, é a filha, esposa, e personagem exemplar... No dia de suas bodas com o marido Nick (Ben Affleck), ela desaparece deixando-o como principal suspeito, ao mesmo tempo que ele se angustia por seu paradeiro.
Às voltas com o "crime", que parece ser o foco central do filme, vai desenrolando o que pra mim é o cerne do enredo em si. Ser exemplar, remete-se a pergunta, exemplar pra quem? E isso nos faz pensar numa posição sedimentada pelos ideais paternos, ideais da cultura e da sociedade.
Até aí nenhuma grande novidade, vários filmes (até os mais charlatões de Woody Allen) já trataram do assunto, mas o ousado olhar desse longa é o que está por detrás de tanto "exemplo", o que fica recalcado, negado, ignorado por quem busca ser exemplar e quão assustador e perigoso pode ser quando tudo isso vem a tona de uma pessoa que não conseguiu escapar desse aniquilador ideal.

Ser exemplar, é a representação da mais pura recusa à castração. No caso de Amy, ela se mostra um indivíduo (porque talvez seja impossível se referir a um sujeito) tão perfeito e completo, que é incapaz de aceitar as frustrações e decepções causadas por perda de emprego/ dinheiro, o fim de um casamento que parecia ser perfeito aos olhos da sociedade, e de uma vida simples e suburbana longe de Nova Iorque.

Nos faz pensar que "tentar", (e digo tentar porque a meta é inatingível ) corresponder a esses ideais paternos, é antes de mais nada a impossibilidade de se tornar sujeito de si mesmo. A saída é a psico ou sociopatia, e esse estado se faz assim tão atormentador, tão assustador.
O psicopata tem em si plena capacidade de convívio social, mostrando-se cortez, simpático, amabile... Tudo faz parte de uma enorme edificação psicológica para seu grande e perverso projeto.
A mentira é das armas mais venenosas que esse tipo de pessoas faz uso, e o que estão em volta, se uma vez dentro dessa mentira, dificilmente sairá dela. É um espiral concomitante de medo, raiva, aprisionamento, que vai fazendo aos tubos vítimas fatais.

"Garota exemplar" é o lado sombrio de cada um de nós, e por que não seria de quem está aí nesse momento, bem ao seu lado?
A nós pobres mortais, a sorte de não sermos tão exemplares assim.

Trailer do filme

Fernanda de Barros Miranda é Educadora física, Naturopata e Psicanalista. Membro da rede de atendimento do Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP. 

domingo, 19 de outubro de 2014

Filme "Trash - a esperança vem do lixo" e a infância

de Isloany Machado
E neste dia das crianças eu vou falar de um filme que assisti ontem e que me deixou com uma sensação de estar implodida, inundada por um sentimento desconhecido. Um buraco que tem que ser preenchido com palavras. Trata-se do filme Trash – a esperança vem do lixo. Gravado no Brasil, de direção estrangeira, com destaque para Selton Mello e Wagner Moura. Mas pra meus olhos o destaque foi para os três atores mirins, por isso escrevo pra comemorar o dia das crianças.

            O contexto do filme é um lixão onde vai parar uma carteira muito valiosa, não pelo dinheiro que contém nela, mas por guardar um segredo de um poderoso político. Tão poderoso que coloca a polícia a seu serviço para ir até o lixão encontrar a bendita carteira. Acontece que um garoto já encontrou e dividiu o segredo com seu amigo. Inicia-se a investigação tanto dos policiais, quanto dos garotos, que não confiam no policial –personagem de Selton Mello. São três meninos, um que encontrou a carteira, outro que sabe o segredo, e um terceiro, o Rato, que vive dentro do esgoto, fede e tem feridas no corpo que nunca saram. Uma bela metáfora para dizer o que é a miséria, o que é estar à margem, como feridas que nunca fecham.

            Uma das cenas mais pesadas é quando um dos garotos, justamente o que encontrou a carteira, é levado pela polícia e, num efeito “montanha russa” dentro da viatura, é jogado de um lado a outro pelos próprios solavancos propositais dados por seus algozes. Ele escapa vivo (tal como uma barata em que se pisa, pisa, e ela insiste em não morrer). Quando questionado sobre o porquê de estar levando a investigação adiante, ele simplesmente diz: “porque é certo”.

            Então, eu não diria que a esperança vem do lixo, mas sim que vem da infância. A não ser que o lixo esteja colocado aí como fonte de vida, de desejo. O nada. O resto. O lixo. De onde não se acredita que pode haver algo além, é justamente daí que a vida pulsante renasce. O grande desafio é vencido pelas crianças, pela infância, lugar onde está todo o nosso “lixo”, tudo o que deveria estar esquecido, mas insiste, persiste. Quanto ao desejo, deveríamos ser assim: faço porque é o certo, e nada mais. É o certo no sentido moral? Nem de longe! Esse certo tem a ver com a verdade de cada um. Bem, devo dizer que não acredito em verdades, quanto menos nas absolutas.

            Por isso o filme me tocou tanto. Porque pude ver ali, mais uma vez e sempre, que a infância é o meu lugar. Como diz Mia Couto, “velhos são aqueles que não visitam as suas próprias variadas idades”. Não quero crescer nunca, porque quando a gente cresce o coração fica duro, se corrompe. E só gosto de gente que não tem medo de ser assim, mergulhada na sua pequenez. Somos pequenos diante da imensidão do mundo, dos Outros, dos desejos. Mas por trás dessa imensidão há uma outra, há uma vastidão de matéria da mais elevada qualidade: um nada corporificado, cheio de substância, de sustança. Estar no lugar da infância – questionador, perguntador – pode ser perigoso. Há verdades que preferiríamos não saber. Mas o que mais tentamos sufocar embaixo do tapete, é isso mesmo que volta, se revolta e quer saber.

            Desejo feliz dia das crianças para todos aqueles que não perderam a capacidade de amar, que não pararam de perguntar, pois estar no lugar da infância, pra mim, é justamente isso.
Isloany Machado, 11 de outubro de 2014.

Trailer do filme

Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora da UFMS.  Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br

sábado, 20 de setembro de 2014

A Pergunta dos Seus Olhos

de Aline Fiamenghi


O filme em questão nessa edição é “O Segredo dos Seus Olhos” de Juan José Campanella, maior audiência nos cinemas argentinos em 35 anos. Ricardo Darín interpreta Benjamín Espósito, que aposentado escolhe para tema de seu livro o caso criminal que mais marcou a sua carreira no Tribunal de Buenos Aires. Na organização dos fatos rememorados, ele revê o homicídio investigado em 1975 e termina por repensar as decisões feitas no passado.


Discutiremos a saga do protagonista na busca pela letra do seu desejo. Na oportunidade de escrever o romance de sua vida, ele percebe, como em um jogo de espelhos, como os personagens movidos por olhares, intenções e paixões, se denunciam. 


Entre o homem e o amor,

Há a mulher.

Entre o homem e a mulher,

Há um mundo.

Entre o homem e o mundo,

Há um muro”  

Antoine Tudal


O muro

Impacta o impedimento que Espósito vive em relação ao amor. Como se houvesse um muro, quase palpável para o espectador, o protagonista se aliena da sua condição desejante. Essa (im)possibilidade angustia.

Espósito se apaixona por Irene na primeira vez que a vê, quando ela ocupa o cargo de chefia em seu cabinete. Desde então eles mantém uma relação estreita, mas ele é claramente ambivalente em relação a ela.

O protagonista fica paralisado perante o pedido de amor.


O amor


TEMO, é a palavra que acorda nosso protagonista no começo do filme e o faz estranhar-se. O que há nisso? É como ele soubesse, sem saber, que havia algo ali. Na palavra, uma brecha, uma fissura, que o faz movimentar-se. O que há por trás da vontade de escrever o livro? Ele é o autor de que história? 


É nesse ponto e com essas perguntas que seguiremos o percurso do bilhete: TEMO. 


Somos levados a pensar que o remetente é algo ou alguém em Espósito, ele próprio autor e endereço dessa mensagem. A saga segue no sentido de recuperar a “letra enigma”, a letra “a” faltante tantas vezes em sua escrita e em sua máquina de escrever.


A letra que foi perdida, mas que paradoxalmente, está lá o tempo todo, pedindo um leitor, olhos que a leiam. Talvez essa seja “a pergunta de seus olhos”, nome da novela de Eduardo Sacheri que deu origem ao filme, oportunamente reeditado. Em castelhano e em português o pronome possessivo “seus” não indica gênero, pode ser dele, dela, de outro, ou dos demais.


Os olhos circunscrevem um lugar, diferente do olhar, circunscreve um campo de experiência, de tensão do não-dito: sua intensidade, sua atmosfera, sua melodia, a espessura do vivido, e assim, denunciam o impedimento, a inibição, a paixão.


Podemos dizer que esse é um filme sobre paixões: a de Espósito por Irene, a de Morales por Liliana, a de Sandoval pela bebida, a paixão pelo futebol. “Podemos mudar tudo na vida, menos mudar de paixão”, nessa fala a pista que ajuda Sandoval e Espósito a capturarem o assassino. Por que não muda-se de paixão? Onde ela captura? No objeto perdido, o objeto a, que causa.


Espósito se identifica com Morales, que para ele é o homem que realmente ama, ele diz sobre Morales: “ele está sempre em um estado de amor puro, posso ver em seus olhos”. Mas o que será esse estado puro, absoluto que é visto por Espósito no olhar de Morales? Espósito quando fala de Morales, fala de Espósito não de Morales... No olhar algo do insconsciente está posto.


O amor puro só poderia ser a morte, a prisão que encarcera o carcereiro junto ao assassino. Já que a justiça não garantiu pena justa a Gomez, Morales resolve fazer justiça e dá sua medida ao castigo: prende o assassino e o priva de sua palavra. Nessa recusa da palavra, o apagamento do sujeito. É como se Morales quisesse negar existência a Gomes, mas não com a morte, com a prisão perpétua da morte em vida, o que é muito pior.


Ao se deparar com a miséria da prisão imposta pela paixão do carcereiro e do assassino, Espósito se depara com a própria prisão-paixão e consegue sair dessa posição. Recupera a letra e então pode lê-la, por “mais complicado que possa vir a ser”, ele não se importa mais: de TEMO à TE(A)MO, o percurso para uma condição desejante.

São Paulo, 29 de Julho de 2010

Trailer Oficial do Filme

Endereços/links para filme completo com legenda:   https://www.youtube.com/watch?v=03QTWAd9qtg
e   https://www.youtube.com/watch?v=e6Yb_FP7hMY


Aline Fiamenghi é praticante da psicanálise, mestre em psicologia clínica pela PUCSP, coordena o trabalho de Imaginação e(m) Movimento a partir de seus conhecimentos em consciência corporal, movimento autêntico e dança contemporânea. Participa da rede de pesquisa Sintoma e Corporeidade no Instituto da Pele - UNIFESP e das Formações Clínicas no Fórum do Campo Lacaniano - SP.

domingo, 15 de junho de 2014

PHILOMENA : Culpa, parente da angústia?

de Henrique Senhorini

...certas dívidas, especificamente simbólicas,
excluem a chance de um acerto de contas completo, sem resto.” Oscar Cesarotto

O filme "Philomena" do diretor inglês Stephen Frears, com quatro indicações para o Oscar em 2014, além de carregar seu nome, foi inspirado em sua vida. Até dá para pensarmos que é quase um documentário, mesmo com as pitadas de humor(?) que o diretor - proposital ou não - insiste em amalgamar com a crueza da vida como ela é. 

Mas afinal, a nossa vida não é um documentário ficcional? A nossa própria história “verídica” também não é uma ficção, visto que sua tessitura é permeada pela fantasia?
E este excelente filme bem demonstra o lugar de importância que a fantasia ocupa em nossas vidas. Trata-se de um lugar que tenta nos fazer esquecer a máxima de Hélio Pellegrino: “a condição humana não tem cura”. Pois, a fantasia consegue, de acordo com o enunciado freudiano, produzir uma satisfação que é negada pela realidade. Pensando com Coutinho Jorge, a fantasia é uma solução para nós sub-existirmos com um minguado de satisfação que podemos retirar da realidade. Contudo, não é propriamente da fantasia que vou tratar aqui, mas, sim, recortar um afeto tão presente no filme e caríssimo para os neuróticos (no mínimo, somos neuróticos): a culpa.

Bem, como já disse, o filme é baseado na história real de Philomena Lee, uma senhora irlandesa que teve seu filho de três anos de idade, Anthony, “adotado” em 1955 por uma família organizada de acordo com os padrões de sua igreja. E por saber que se tratava de uma história verídica e, concomitante, não pertencente exclusivamente à personagem que dá nome ao filme “Philomena”, causou em mim uma indignação tamanha, que só escrevendo sobre para, quiçá, elaborar melhor. E o filme tem muito disso, luto e elaboração, luto e elaboração, luto e elaboração...
Porém, confesso que não foi nada fácil digerir que o acontecido não foi na idade média, mas na metade do século passado. Porém, pior é saber que em pleno século XXI, ainda acontece esse tipo de barbárie. E minha indignação – raiva e repulsa – aumentou mais além, quando fiquei sabendo, diga-se de passagem, que mais de duas mil (2.200 mulheres/mães, segundo a Folha de S.Paulo) conterrâneas de Philomena – irlandesas como ela – tiveram a sua mesma má sorte, a de vivenciarem a adoção forçada pela igreja católica irlandesa - na realidade, vendidos - de seus filhos por pais norte-americanos endinheirados.

Após este meu desabafo (eu precisava disso), vamos ao filme...
Mas, antes de adentrarmos na história apresentada, só um lembrete que considero importante mencionar: vamos tratar aqui da história retratada no filme, somente dele.
Bem, dito isso, a primeira cena com a protagonista mostra Philomena - idosa e nos dias atuais - numa igreja acendendo uma vela e respondendo ao padre que era para alguém especial. Em seguida, o diretor mostra-a sentada em um banco eclesial relembrando um grande acontecimento de sua vida. Via flashback, ela se vê vivenciando um momento raro seu de intensa felicidade, que a marcou para sempre e de várias maneiras. Um rapaz galanteador que conhecera momentos antes, no parque de diversão nos anos 50, no qual se encontrava, a corteja. Philomena, uma feliz menina moça do após-guerra, experiencia pela primeira vez um romance tórrido, abrasador e - talvez por isso mesmo - fugaz. A sua maçã de amor mordida é destacada ao cair no chão. Igreja + padre (pai) + maçã = Eva + pecado original? Temos aí uma intenção do diretor?
Stephen Frears, o diretor, avança nas lembranças e nos mostra Philomena, já grávida, sendo inquirida pela madre superior do mosteiro, a Abadia Roscrea. Um local religioso que recebia futuras mães solteiras, levadas por suas famílias envergonhadas. E, logo no início da inquirição, a tal madre dirige esta pergunta a Philomena: “Você gostou de seu pecado?”

um pequeno parênteses aqui
Interessante a palavra pecado (pe-cado): pé caído; pecar: dar um passo em falso, palavras que fizeram, segundo Geraldino Alves Ferreira Netto, surgir as expressões “queda original” e “cair em pecado”. Geraldino ainda nos lembra de Édipo, “pé inchado”, pois seus pés foram amarrados “para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de julgamento, em incesto”. Porém, o pé inchado o fez mancar.

Continuando na Inquisição, êpa, na inquirição, Philomena tenta se defender, já quase em prantos: “Nunca me ensinaram sobre [fazer] bebês”. Defesa esta que faz a madre, de bate-pronto e com língua incendiária, culminar: “Não ouse culpar as irmãs (sic). Você é a causa desta vergonha. Você e sua indecência.”.
Em seguida, outro corte e o diretor avança mais um pouco na linha do tempo mostrando a cena do parto. Parto este - pélvico e sem anestesia - sendo realizado pelas próprias freiras. Mas, diante da constatação que o bebê de Philomena - aos berros pela dor - se encontrava em posição invertida, uma das freiras, acho que a parteira principal, sugere para a madre superior chamar um médico. Porém, ela recusa a proposta dizendo: “Está nas mãos de Deus agora. A dor é a penitência dela”.  Crime e castigo?  Sim !!!  Philomena foi considerada culpada pela madre superior e o parto doloroso era somente o inicio de sua pena.

outro parênteses aqui...
Ceder ou não ao desejo? Talvez este seja o ponto fulcral das divergências entre a psicanálise e a religião, como nos lembra Geraldino Netto, visto que - generalizando - para as religiões a culpa é decorrência de ceder ao próprio desejo, enquanto a psicanálise, através de Lacan, nos ensina o contrário: “a única coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”, em A Ética da Psicanálise.

Mais um corte do diretor proporciona o retorno de Philomena ao sofrimento atualizado pelas lembranças. Era o dia no qual seu filho Anthony completava 50 anos que provocava tamanha dor. E ela carregava o segredo de ter tido este filho por todo esse longo tempo, mais o fato dele ter sido “doado” contra a sua vontade. Sim, de ter tido o filho e não dito ao mundo sobre sua existência, a de Anthony, mais a tentativa, via resignação, de aplacar sua dor, mais o fato não ter ido procurá-lo, de nada saber e ou não querer/poder saber sobre o filho, era o seu martírio (em botânica, flor-da-paixão). Essa era a pena a cumprir. Mas, o que fazer? Afinal, a sentença da madre superior fora dada e Philomena não sabia como pensar e fazer diferente, principalmente diante do mundo no qual
vivia. Até se deixou convencer de sua culpa, assinando um documento padrão - produzido pelas freiras para as mães solteiras - desistindo da guarda de seu filho. O mesmo serviria posteriormente para impedir essas mães a voltarem atrás de suas decisões e, ao mesmo tempo, protegeria as “irmãs” de seus atos criminosos.
Só que meio século depois ela cansou de pagar esta dívida impagável, imposta pelas normas sociais e religiosas de sua época. E, talvez, por viver agora no presente, numa sociedade um pouco mais branda em relação ao seu pecado, mãe solteira, lhe tenha dado a coragem necessária de, enfim, lutar a favor de seu desejo.

um aparte...
Aqui tem um fato indicando que a culpa pressupõe um Outro. Não um outro qualquer, mas um grande Outro. Lembramos que geralmente a mãe é nosso primeiro de muitos Outros (mãe, pai, tio, professor, padre, igreja, Deus, empresa, sociedade, capital, etc...), em termos de importância para cada um de nós. De acordo com Colette Soler, “há uma culpa em relação às normas do Outro” e esta, a culpa, “se desloca quando as normas mudam”. Portanto, podemos pensar que a culpa tem íntima ligação com o Outro, com suas normas e ideais.

Culpa, dívida? Shuld, na língua do pai da psicanálise, a língua alemã. E as línguas germânicas permitem a uma única palavra fazer uma sobreposição de significados. Esta sobreposição encontra na formulação da metapsicologia freudiana sua parente, a angústia. Mas não qualquer angústia e sim um tipo especial, a produzida pelo supereu (superego).
Em “Declinações da Angústia”, Soler nos diz que esses afetos, a culpa e a angústia, mesmo sendo diferentes são irmãos, pois se avizinham, seguem-se e se combinam particularmente “nos sujeitos que são fortemente submetidos à voz do supereu”. E com este “não há perdão, não há circunstância atenuantes: não se escapa da prisão com o supereu!”. Ainda com a autora, a diferença entre os afetos superegoicos é que a culpa engana, não produz certezas, já a angústia produz. E as angústias do supereu são as mais ferrenhas e talvez, também, as mais “devastadoras” e “aberrantes”. Entretanto, a culpa, como a psicanálise nos ensina, é fundante da subjetividade e o seu fundamento não está ligado ao fato de gozar e sim ligado ao fato - Lacan em "Subversão do sujeito", segundo Colette Soler -  que o gozo é sempre perdido, parcial, limitado e insuficiente. Ligado "a falta do gozo", a falta.

E nós, neuróticos, privilegiamos "as formas de gozo que participam da privação: o gozo da falta de gozar".  Isso significa que nos é impossível evitar a culpa? Essa é nossa pena? A pena de existir ?
S.Paulo, maio de 2014 
Trailer do filme