quarta-feira, 2 de setembro de 2015

“a”- ssexualidade em “Ninf()maníaca”

de Emeline Costa

Este texto pretende fazer uma leitura Psicanalítica da “Ninf()mania”, mais especificamente da personagem “Joe” do filme de Lars Von Trier, e levantar algumas hipóteses acerca da mesma.
Para além das cenas e conteúdos eróticos do filme, o que chama a atenção desde o início é a ausência de uma letra já apontada no próprio nome da obra, a saber, “Ninf()maníaca”.
O sentido da letra em Psicanálise foi apontado por Lacan em 1950 no texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957/1998, Escritos). Lacan deixa claro que “é toda a estrutura de linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (p 498)
É neste sentido que não podemos falar de estrutura na psicanálise sem a referência de estrutura na linguística. O termo estrutura vem do latim structure, que significa construir e, no sentido figurado, “arranjo das palavras (na frase para produzir um ritmo)”. Segundo o Dicionário de Filosofia, o termo estrutura pode ser tomado em dois sentidos. O primeiro seria o sentido lógico, equivalente à construção, constituição. Ou seja, é sinônimo de sistema. Saussure emprega a palavra sistema para se referir ao sistema da linguagem. O outro sentido da palavra estrutura diz respeito ao fato de que não se trata de qualquer sistema de relações, essas relações têm que ser hierarquicamente ordenadas. Isto quer dizer que estrutura é um sistema constituído por determinados elementos articulados dentro de certo limite, sendo possível encontrar variações mais ou menos autônomas.
A aplicação do termo estrutura à linguística foi de responsabilidade de Ferdinand de Saussure. Isso porque ele propõe estudar a língua falada em um determinado espaço. Cada elemento da língua constitui um signo linguístico, que é a relação entre um significado e um significante. Saussure (1916/1998) chega a esse signo linguístico porque critica o vínculo simplista que une um nome a uma coisa (nome/coisa). Entendemos significado como conceito, e significante como imagem acústica – que é a impressão psíquica de um som, independente da materialidade do som e da imagem. É precisamente a articulação entre esses dois termos – s e S – que produz a significação.
É essa articulação de Saussure entre significado/significante que chamará a atenção de Lacan (1956/1998), pois ele está interessado em aplicá-la em sua teoria da letra. Ou seja, estabelecer uma relação entre linguagem, inconsciente e pulsão.
­Mas ele retoma as elaborações de Saussure mudando o tipo de relação entre significado e significante. No que diz respeito à barra, que, para a linguística tem a função de unir as duas faces (s/S), para Lacan ela cumpre a função de separar esses dois elementos. Ele também opera uma inversão no signo linguístico, colocando na parte superior da barra o significante: S/s.
No exemplo que traz em seu texto “A instância da letra e a razão desde Freud” (1957/1998), Lacan localiza de modo ímpar o que quer dizer com essa inversão. Propõe representar essa relação do seguinte modo:
Homens     Mulheres
      █                     █
Lacan (1957/1998), desse modo, chama a atenção para o fato de que, no lugar do significado, aparecem dois elementos iguais, ou seja, duas portas, mas cada uma delas correspondendo a um significante diferente. Notamos que, no lugar do significado, introduz-se outra função – a função de simbolização de uma lei, que, nesse exemplo, constitui a de segregação sexual. Lacan extrai mais consequências dessa inversão. Ele demonstra de que modo o significante se insere no significado, ou seja, é o significante que vai marcar, por meio da diferença, a possibilidade de cada um se localizar: como homem ou como mulher. Mais ainda, o significante é um elemento cuja função é representativa.
Então, a significação não surge por uma relação que pode ser estabelecida entre o conceito (s) e a imagem acústica (S), mas pela articulação entre dois significantes: S – S. É a partir desse encadeamento de significantes, enquanto elementos diferenciais, que um efeito de sentido pode ser produzido.
Vejamos isso sob outro ângulo. Antes de uma criança vir ao mundo, ela já existe no discurso dos pais, ou seja, a linguagem a antecede e a inscreve nesse campo através de seu nome próprio Entretanto podem ocorrer casos de crianças que não estão inscritas no desejo dos pais e não serão incluídas nestes discursos, como nos casos de psicose. Ele percebe as palavras, inicialmente, como um enxame de sons, sem nenhuma significação. É esse campo da linguagem, lugar em que a criança é sempre interpretada, que Lacan designa como Outro. Quando a criança articula esses sons entre si e, com isso, produz um efeito de sentido, passando a organizar seu pensamento em cadeia, sob a forma de discurso, podemos afirmar que é possível localizar nessa cadeia associativa o efeito sujeito. Sob essa perspectiva, é perfeitamente pertinente dizer que o sujeito advém do campo do Outro.
Lacan, portanto, formaliza que esse sujeito inventado por Freud está sempre se fazendo representar numa cadeia – cadeia de pensamentos, cadeia de palavras – por um significante para outro significante. E isso só é possível porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem. E, sendo estruturado como uma linguagem, as formações do inconsciente obedecem às suas leis: a metáfora e a metonímia. A frase “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” quer dizer que as formações do inconsciente sempre têm uma mensagem veiculada. Em outras palavras, podem ser tomadas como um texto para ser lido.
A metáfora funciona por uma substituição, ela aparece nas formações do inconsciente como o sintoma, o esquecimento, os chistes e os atos falhos. Podemos usar o exemplo de Freud, no capítulo III, O mecanismo psíquico do esquecimento, sobre um fato ocorrido, com ele mesmo, quando conversava com um amigo e tentava lembrar o nome do pintor de uma obra que queria indicar para que o amigo que visse. O nome do pintor era Signorelli, porém Freud não conseguia se lembrar dele; em sua lembrança, vinham os nomes Boticelli e Boltrafio. Podemos perceber que há nos significantes Signorelli e Boticelli uma semelhança. Na metáfora, dizemos que a troca foi feita por similaridade. Não entraremos nos pormenores do caso. Mas o usamos apenas para mostrar como isso funciona nas formações do inconsciente. No caso dessa substituição, o significante Signorelli remetia Freud a outros conteúdos que só puderam se apresentar na consciência por uma substituição. É através desta estrutura metafórica que se produz os efeitos de significação. E, segundo Lacan (1957/1998), “a condição de passagem do significante para o significado, essa transposição da barra S/s, exprime provisoriamente o lugar de sujeito... mesmo não havendo encontro ou centralização entre essas partes” (p519).
Acompanhando a metáfora, temos a metonímia, que também podemos perceber nesse exemplo. A metonímia é o deslizamento de significante a significante, e se dá em uma relação de deslocamento. De um significante se passa ao outro, como vimos com o Signorelli, Boticelli e Boltrafio, que surgem a partir de um deslizamento da cadeia significante.
Para Lacan:
A metonímia é a conexão de significante a significante, e se dá em uma relação de deslocamento “indicando que essa conexão do significante com o significante permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta-a-ser na relação de objeto, servindo-se do valor de envio da significação para investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta... Pela metonímia e pelo seu valor negativo no que diz respeito à significação vemos o valor da manutenção da barra no S/s Lacaniano.” (LACAN, 1957, p 519).
Outro ponto importante na teoria de Lacan a respeito da metáfora e da metonímia, é que o sujeito vai advir se uma operação metafórica for bem-sucedida. É a metáfora paterna. É o que vai possibilitar que o sujeito não deslize indefinidamente na cadeia significante, funcionando como um ponto de amarração.
Lacan vai dizer da metáfora paterna como uma substituição de significantes que possibilitará o advento do sujeito: o significante do Nome do pai, substituindo o significante do Desejo da mãe, produzindo a significação fálica. A significação fálica é o que permite ao sujeito significar seu ser sexual, responder acerca do desejo do Outro e localizar seu gozo.
Não havendo tal operação...
Pois bem, falaremos então da personagem “Joe” do filme Ninf()maníaca de Lars Von Tries. O filme nos revela através do próprio discurso da personagem como ela localiza a ninfomania na sua história. Ela vai falar desde a descoberta da sua vagina, em sua infância, à vida adulta. “Joe” especialmente ela, nunca conseguiu nada que pudesse dizer algo sobre si, sobre seu sexo, sobre o amor, sobre relacionamentos, sobre falta. Desde sempre.
Em suas relações sexuais pedia aos homens que lhe penetrassem a boca, o ânus, à vagina. Seu pedido, na verdade, era que preenchessem seus orifícios, pois como resposta ao Real do sexo ela só podia pedir isso. Real enquanto uma categoria topológica estabelecida por Lacan. Entretanto, ela nada sabia sobre o que pedia, pois não sabia o que faltava a ela. O que seu discurso nos sugere é que faltava algo que pudesse simbolizar aquela repetição infinita em que se encontrava por conta da Ninf()mania, dizer seu lugar acerca do desejo do Outro, e localizar seu gozo.
Tentou inscrever-se no mundo pela via da sua “Ninf()mania”, que lhe lançava numa repetição infinita sem possibilidade de um ponto de basta, além de nunca ter possibilitado a ela participar ou fazer laço social. A tão repetida frase de “Joe” ao longo do filme: “preencha meus buracos!” se mostra comovente. Trata-se também de um pedido impossível.
O pai de Joe um dia lhe falou da alma das árvores, mas será que ele tinha uma? A alma a que me refiro aqui é a alma no sentido Lacaniano. Alma enquanto um dom. O pai e a mãe de “Joe” não a engajavam nas trocas simbólicas, não demonstravam um amor como um dom capaz de tirar-lhe da condição de puro objeto e remeter-lhe a algo da falta-a-ser. O amor e olhar de seus pais eram sempre objetalizantes.
O termo ninfa e a definição que “Seligman” – outro personagem do filme - lhe dá nos interessa: “fase inicial da vida de um inseto”. É uma fase muito imatura do desenvolvimento de um inseto e de outros bichos também. Mas ninfa é uma palavra que tem outros significados. Vem do grego “Nimphe”, que são espíritos, habitantes dos lagos e riachos, bosques, florestas, prados e montanhas.
Como ela diz de maneira bem clara no filme: “Não sou viciada em sexo. Sou ninfomaníaca”. Podemos pensar a “ninf()mania de Joe” como um problema mesmo com a “fase inicial da sua vida”. Lá onde o sujeito se constitui, com a entrada no universo da Linguagem.
Recorreremos a Freud e nos basearemos no que ele conseguiu elucidar quanto à constituição do sujeito. Freud em seu texto sobre “Pulsões de Destino da Pulsão” (1915/2004) denomina essa fase inicial da vida ou do desenvolvimento do Eu como Narcisismo. Fase durante a qual suas pulsões sexuais se satisfazem de maneira auto-erótica. No mesmo texto ele enumera os destinos possíveis da pulsão, a saber: “a transformação em seu contrário, o redirecionamento contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação e condiciona tais destinos à organização narcísica do Eu” e como este se relaciona com o objeto. (p 152)
Nesse caso não se pode tratar a ninf()mania como um sintoma que indicaria a existência de uma operação metafórica, permitindo ao sujeito construir alguma significação para o seu sexo e um sentido quanto ao enigma do gozo sexual do Outro. Entrar na partilha dos sexos inclui um processo de simbolização, capaz de dar outro estatuto à vagina enquanto órgão e engajar o sujeito no mundo quanto ao seu ser sexuado, oferecendo-lhe um lugar no campo feminino referenciado a um homem ou no masculino referenciado a uma mulher. Um saber mínimo que permite ao sujeito posicionar-se minimamente na partilha simbólica entre os sexos e no mundo, ou seja, no laço social. Assim, o título deste texto – “a” ssexualidade se justifica, pois nossa hipótese é que “Joe” não chega a significar seu ser sexual.
Para Lacan
se digo que o inconsciente é o discurso do Outro com maiúscula, foi para apontar o para-além em que se ata o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento. Em outras palavras, esse outro é o Outro invocado até mesmo por minha mentira como garante da verdade em que ela subsiste. Nisso se observa que é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade”. (LACAN, 1957, p 529).
Lacan aqui se refere ao inconsciente enquanto um saber, à pulsão e ao gozo, ou seja, como a articulação desses termos aparece na fala do sujeito, indicando assim o lugar desse sujeito na busca de sua verdade.
A nossa hipótese é que a tal repetição infinita de “Joe” apresentada por sua ninf()mania refere-se à inexistência de uma letra que faça limite entre o saber inconsciente, a pulsão e o gozo. Apontada no próprio nome do filme, podemos supor também a falta de uma operação metafórica, fazendo com que o caminho pulsão seja redirecionada contra seu próprio eu sempre, nos termos Freudianos, por não haver separação entre ela e o outro ou o objeto. Em termos da organização narcísica de “Joe” consideramos a hipótese de Melancolia. Uma categoria que se enquadra dentro da estrutura clínica da Psicose.
Freud em seu texto “Luto e Melancolia” (1915/2006) se ocupa dessa afecção para entender a “constituição do Eu humano” (p107). Neste texto ele demonstra que no caso de um melancólico algum estremecimento ocorreu na relação desse sujeito com a primeira pessoa escolhida como objeto de amor. Como se trata de uma primeira relação, Freud sugere uma forte fixação da libido nesse primeiro objeto.
Podemos pensar que esta primeira pessoa seria a mãe, geralmente, a primeira pessoa com a qual a criança estabelece uma ligação. Esse “estremecimento da relação” (p 108) entre a criança e a mãe aconteceria em uma fase bem precoce da constituição do Eu. Fase em que algo começaria a se dar em termos de separação entre a criança, a mãe e o objeto que seria extraído dessa relação primeira. No caso da melancolia, no momento em que cai um objeto do Outro, segundo Freud (1915/2006), “o próprio Eu do sujeito é que sofre uma perda” (p 105). Dito de outro modo, o Eu se identifica com o objeto abandonado, como se fosse o próprio objeto.
Outro aspecto dessa fase de constituição do Eu, segundo Freud (1915/2006), é que já existe uma parte do Eu que se separou e se contrapôs a outra. Essa parte que se contrapõe Freud a reconhece como uma instância crítica que trata a outra como se fosse um objeto (p 107). Mais tarde Freud a denominará de Supereu. Daí a forte caraterística de autodepreciação que esses sujeitos apresentam. No relato de “Joe” podemos reconhecer claramente essa autodepreciação - “insensibilidade”, “sou um ser humano ruim”, “eu... nada” dentre outros.
Diante disso, pensamos a ninfomania de Joe como uma amarração em resposta a sua estrutura melancólica. Apesar de ser uma amarração frágil por lançar lhe sempre a um gozo mortífero - uma repetição infinita de procura por sexo o que podemos inferir à mania, tendência da melancolia de se transformar em seu oposto. Pois, o contrário disso seria justamente o que aparece no início e fim do filme “Ninf()maníaca”: A escuridão... O buraco... O vazio... O nada à semelhança de uma experiência de “fim do mundo” como, curiosamente, Lars Von Trier trabalhou em um filme anterior chamado “Melancholia”.
Para finalizar compartilhamos a opinião de Charlotte Gainbourg, atriz que interpreta a personagem “Joe”, de uma entrevista sobre o filme:

"Joe não tem uma visão muito otimista da humanidade. Sendo assim, sim. Não concordo com ela, mas eu a amo muito. Acho que ela se torna comovente. É estranho ver a si mesma em um filme, é estranho falar dessa forma, mas é fácil defendê-la."
Trailer do filme

EMELINE COSTA. Psicanalista. Membro dos Seminários Retorno a Lacan, Seminários de Leitura e Café com Freud. Consultório em Macaé (RJ)